domingo, 26 de outubro de 2014

Achados e perdidos

Despedi-me dele com aquela sensação ruim no abdome, como sempre. Depois de tanto tempo, o tchau ainda era amargo. Pontuava um momento que deveria ser infinito. Suspirei e subi a rua, ainda sentindo o toque dos lábios. Uma voz martelava no fundo da minha cabeça: "Você deixou algo!" Deixei? Repassei mentalmente tudo que havia trazido na bolsa; chave, bilhete, casaco, livro, garrafa vazia. Apalpei a bolsa com os dedos, só para reforçar a certeza de que tudo estava lá. 

Os quinze minutos que passei sentada no metrô foram gastos no mesmo trabalho incômodo de conferência e reconferência, dessa vez abrindo a bolsa e retirando item por item. Carteira. Cartão. Remédio. Trident sabor menta. Tudo ali. Assusto com um berro ao me levantar para deixar o trem: "Olha ali! Você tá esquecendo!" Era a voz. Sobressaltada, olho pra trás a tempo de ver o trem partindo da estação, encontrando meu assento tão vazio quanto deveria estar. Retruco, já irritada: "Esqueci o quê, sua maldita? Me deixa em paz." 

"Você deixou lá."

"Não acredito que esqueceu isso."

"Não adianta procurar que não tá na sua bolsa."

Não havia nada que eu pudesse fazer. Eu certamente deixara algo lá, não era possível. Mas o quê?!

Um banho. Eu precisava de um banho. Liguei o chuveiro e deixei o questionamento de pano de fundo por um momento. Concentrei-me apenas no que havia acontecido naquele dia. Fui gradativamente envolvida por seu cheiro, o som da sua risada e a cor de seus olhos, e na minha cabeça era abraço e risos e beijo no cocuruto. E tudo estava ali. O riso imaginário me saiu pelos lábios quando finalmente percebi o motivo da minha sensação de vazio. Eu o havia deixado lá. Havia esquecido de trazê-lo na bolsa comigo. Deixei pra trás sua casa, sua rua, o metrô que me levava até ele, o rastro do seu perfume. A voz, dessa vez, soou debochada:

"Viu, menina? Você não ia encontrar nunca nos achados e perdidos..."

domingo, 19 de outubro de 2014

(hemato)poética

Há muito tempo, antes dessa construção se tornar um condomínio de casinhas modernas, precisamente onde hoje fica o quarto em que durmo, existiu um quintal. Pequeno, escondido, um quartel general aos olhos daquela criança magricela. Às vezes, quando o sol estava bom de tomar e os joguinhos lhe aborreciam, ela pegava sua boneca Emília numa mão, o topolino de estimação na outra e saía para brincar no quintal. Um dos quatro lados que o delimitavam era um muro alto de tijolos e concreto, escuro, áspero, guardando um segredo sobre o que havia do lado oposto. Sua única fraqueza era um buraco bem no centro, como um umbigo, do tamanho de um ovo de páscoa. Frequentemente, a menina esmagava o rosto contra o buraco do muro, na esperança de enxergar mais sobre o outro lado, mas tudo que ela sempre via eram folhas compridas e escuras. A única coisa que ela sabia, então, era que do outro lado havia pelo menos uma árvore, e que aquele muro muito provavelmente era o divisor entre sua casa e um mundo encantado.

Um dia, espiando pelo buraco como costumava fazer, ela viu uma fruta. Uma pequena fruta de formato ovalado e ainda verde, pendendo de um dos galhos da árvore. A excitação foi tanta que chamou a mãe e o padrasto para dividirem com ela a alegria da descoberta. "É uma manga, filha. Essa aí é mangueira, mas a terra não é boa, não. Por isso que quase não dá manga." Ela acompanhou a epopeia da manga até o dia em que ela caiu. Simplesmente não estava mais lá. E desse dia em diante a mangueira nunca mais deu fruta, nenhumazinha. "E nunca mais dará", ela pensou. 

Demoliram a casa, derrubaram o muro que escondia a árvore e todo o resto do quintal da vizinha. Construíram o condomínio de casinhas modernas. E a sacada do meu quarto é justamente cara a cara com a mangueira. Eu a acompanhei durante todos esses anos, admirando sua altivez e suas folhas brilhantes, conformada com o fato de que ela jamais geraria qualquer outra manga. Eis que, numa tarde, ao voltar da faculdade, deparo-me com uma fruta verde e ovalada a pender de um dos galhos. Nenhuma palavra no mundo expressará o que essa visão significou para mim. É a renovação súbita da esperança. É mais sobre sentir que escrever. 

terça-feira, 29 de julho de 2014

O ciclo da vida

Desde que comecei a estudar veterinária, perguntei-me muitas vezes quando eu finalmente sentiria que estava no caminho do meu coração. Foram escuros os dias em que temi jamais senti-lo. Uma escolha impensada, eu achava, impulsionada por um desejo infantil, que não seria suficiente para abraçar a profissão de toda a minha vida.

Duas semanas atrás, estava eu às cinco e meia da manhã na estação Artur Alvim, carregando uma mala, uma bolsa e uma mochila, que a custo comportaram tudo que eu queria levar. Mais tarde, naquele mesmo dia, desfazia-as todas no meu novo quarto. Um quarto que, mal sabia eu, guardaria muitas lembranças deliciosas, e uma saudade maior que aquele campus inteiro. Onde eu faria novas amigas (e o Kateta), e estreitaria os laços com as que já possuía. Onde, juntas, escreveríamos poemas de versos terminados em "eco", gritaríamos de medo, riríamos de faltar ar, aprenderíamos dança do ventre. E comeríamos. Pra cacete.

O sol nascia num vermelho sanguíneo de encher os olhos, emoldurando a silhueta dos cavalos recém-despertos, uma visão tão gentil que compensava nossos protestos por ter de colocar o despertador para tocar antes das seis. A dor muscular advinda* de cavocar silagem com a enxada, ou carregar baldes de ração, sumia quando os víamos comendo com gosto. Andaríamos várias centenas de metros com prazer, só pra não abandonar o Mickey na estrada. Tudo era gostoso, não havia nada que fizéssemos juntos que não valesse a pena. Eu sinto falta disso. São Paulo nos torna muito individualistas, chutando-nos cada um pra um canto. A gente acaba perdendo um pouco aquele sentimento gostoso de ser parte de um grupo.

Foi Pira o palco da descoberta que várias vezes me trouxe lágrimas aos olhos: Os animais estão todos vivos! Soa óbvio, eu sei, mas essa consciência me acertou como um raio. Aqueles olhos, tão cheios de expressão e personalidade, refletiam a mim mesma. Lá estava o feno, que alimentaria o boi. Lá estava o boi, que me serviria de alimento. E, um dia, quando eu morrer, afundarei na terra e ressurgirei como planta, tomando meu lugar no ciclo. Todos temos tempo de ser presa e predador, inclusive as plantas e os humanos. Tudo se transforma, tudo é feito de uma sopa de átomos emprestados. E foi aí que, com o coração a mil, enxerguei a beleza da minha escolha, e o amor pelo que um dia farei.

Sinto falta das estrelas surreais, da palavra-com-A, da guerra de bosta, dos cabritinhos, do Miltinho, da Sharon, do Jafar, do cheiro de cu. E daquela moda, e do C8, e das cococoisas. Mas, acima de tudo, sinto falta de estar com vocês. Aprendi tanto sobre amizade, afeto, convivência e sobre mim mesma nessas duas semanas que mal consegui colocar nesse texto. Quero terminar dizendo que NÃO VEJO A HORA DE PASSAR UM SEMESTRE COM VOCÊS! De preferência, com a presença de um amigo que fez uma falta gritante (saudades, bandeco). 

Obrigada pela parcela enorme de culpa que têm por essas terem sido as melhores férias de todas. E aproveitem esse gostinho de descanso que ficou no fundo da língua.

*adicionem "advinda" à lista que já contém "ousados", "exposta", "frustrada", "precária", "tristonha", etc.


quarta-feira, 2 de julho de 2014

Há dezoito anos que moro na mesma rua. Não conto os dois últimos em que fiquei longe. Eu sempre tive consciência de como ela é linda, mas, às vezes, esqueço. Foi o que acabou de acontecer. Hoje de manhã, levando a Maria Nita pra passear, foi como se a visse depois de muito tempo. O ipê amarelo na calçada oposta à minha ainda estava lá, cobrindo de flores a picape vermelha do vizinho, uma visão que me tira o fôlego desde pequena. A vista do céu ainda é a mesma, uma vista privilegiada, posto que minha rua é bem alta e longe de prédios. Se eu olhar bem pra cima, envergando o pescoço em noventa graus, enxergo só o céu e nenhuma casa, e parece que estou voando. Sem contar a música animada vinda da academia, o dálmata da senhora minha vizinha, a goiabeira na calçada da bifurcação, que só deu fruta uma única vez na história desde que nasci. Como se uma pedra martelasse meu crânio, notei que venho tendo pensamentos tortos. A verdade é outra.

Percebi que tenho muita sorte. Não só por morar nessa rua, mas por ter todas essas chances. Por ter um amor correspondido. Por ter família, amigos, casa. Por poder estudar e viajar. E brotou uma semente há muito enterrada. A vontade de que todo mundo no mundo se sinta assim também.

terça-feira, 1 de julho de 2014

"All things must pass", he said

Está aí, ó: a borboleta com a asa amassada. Quem quiser ver, que veja. Lagarta que não coube mais no casulo. Saiu antes do tempo, ou saiu tarde demais, pouco importa; saiu torta. Eu a amo e vivo, com todos aqueles acordes errados e as cores vibrantes e as memórias. Confia no chão sem confiar nas pernas. Vê o sol nascer e acredita que inventou a luz! Tem medo da noite, quando se vê refletida. Tem medo de si mesma nua.

A vida, hão de concordar vocês, a vida é o fenômeno mais lindo que há. Sabe deus se foi deus quem fez, se é acaso. Bom de pensar assim é que te tira da sua vida, como um gancho que puxa pro alto, bem lá no alto. Não parece mais tão assustador lá embaixo, parece, borboleta? Olha só toda essa gente. Agora, vai. Desamarrota essa asa e desce, que está atrasada (nossa moça tem um encontro maiêutico. Adivinhem com quem).

Escrever a alma não te faz menos forte. Dar esse presente às pessoas é que talvez seja narcisista. A essa altura, deve ser. Ah, mas isso é de uma beleza...

É tão gostoso não poder voar, quando ainda não se sabe ao certo para onde ir, não é? 


quinta-feira, 19 de junho de 2014

Aquela que vem do mar

A noite era fria e calma. Nada se ouvia além do bater das ondas no rochedo, uma melodia triste e ritmada. Nenhuma gaivota, nenhuma cigarra e nenhum crustáceo se atrevia a interromper a canção hipnótica. Cada pedaço de vida na praia se calava para embeber-se do som, e observar a moça de longos cabelos e expressão sombria no alto do rochedo.
Seus olhos brilhavam como dois faróis na penumbra. Ela contemplava o mar. Olhava-o com febril adoração, como um crente a seu deus. Enfim, ela o encontrara; não tinha mais medo do depois, ou do que haveria à sua espera, se é que haveria. Toda angústia, todas as perguntas e toda decepção não mais existiam. Não ali, sob o teto de água.
A moça fechou os olhos aliviada. Estendeu os braços, saudando o mar, adorando seu deus, tão acolhedor, tão piedoso... O mar a chamava; dentro dele, todas as respostas. Ela sabia disso. Angústia, perguntas e decepção, nada mais importava. Rindo, a jovem moça desatou a correr em direção à beira do rochedo, os olhos fechados, os cabelos e o pesado vestido dançando ao sabor do vento... Até que os pés perderam o chão, e seu corpo era como a mais bela gaivota, indo ao encontro das ondas. Livre como nunca antes. Livre de si mesma.
Quando tornou a abrir os olhos, viu maravilhas com as quais jamais sonhara. Seres fantásticos e cores e luzes moviam-se ao seu redor. Minutos, meses, anos se passaram. Não sentia necessidade de comer, pensar ou rezar. Quando o último sopro de ar deixou seus pulmões, quando toda ela era feita de mar, a mão enorme e viscosa vinda do profundo veio de encontro à sua. Ela estendeu os dedos murchos de sal, agradecida. Encontrara sua paz. Então, deixou de existir.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

São Paulo, 12 de junho de 2014

Era meu aniversário. E, embora, a noite fosse fria, não havia lugar mais aquecido onde eu pudesse estar. A realidade bateu-me no rosto três vezes, com carinho: eu não estava sonhando. 

Embora não me lembre do primeiro, lembro bem daquele que, por causa das borboletas no estômago, quase não dei. Pensei, caramba!, a felicidade cheira a Egeo! Éramos um e um. E agora somos um coração secreto, um doce de abóbora que virou maracujá. Não se conta porque os lábios não foram feitos pra contar, e sim pra achar tua boca (a mesma que riu tão linda na quase morte da melancia).

Contigo descobri quanta coisa cabe no tempo em que se espera esfriar os biscoitos. Notei que não há valor numa nota, e vi que, antes, eu nada via. Eu te olhei olhar pra mim, e senti que tudo tinha sentido. Decidi morrer* ali, com a Aydar adoçando o ouvido, tua boca a vinte e três milímetros, a noite que não quero que acabe nem se a virarmos.

Quem diria que o caubói laçaria meu coração. Que S J me faria lembrar de mais que Sandy e Júnior. Amo essa tua coragem de ser. Amo essa certeza de que posso acreditar em tudo que vem desses olhos que me bebem. Hey, baby!, eu te amo!

Da Meireles com um só "l", à minha verdade.



*Embora talvez concordes comigo que morrer de susto com uma freira seria mais engraçado.