quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Barco de papel 20mg

Não foi uma mudança gradativa, como eu esperava; um dia eu acordei e simplesmente me sentia bem. Havia muito isso não acontecia. Surpresa, me agarrei à sensação - um oásis após meses em meio à areia seca -, ávida por cada segundo daquela paz sem causa concreta, mas nem por isso menos real.

Os dias que se seguiram foram mágicos, eu me sentia com catorze anos de novo. O que antes causava dor já não parecia importante, o que causava prazer agora levava a um estado de êxtase próximo à plenitude. Nunca vou esquecer de como foi confortável aquela tarde de chuva em Pirassununga - quem diria! -, os pés descalços na grama e as gotas grossas e geladas pousando na nuca, nos braços, nos olhos. Eu sentia. Sentia o vento e a água que me lavavam de dentro pra fora. Sentia o Deus que me aquecia no céu e a Deusa que me segurava na terra, embalada pela música que a natureza canta a quem se permita ouvir. 

Recuperei alguma motivação pra estudar, apesar do aumento do sono, e reencontrei prazer em escrever. Minha cachorra se sentiu segura no meu colo, estremeci de amor pelo riso provocado, as maritacas fizeram ninho no pé de manga em frente à sacada do meu quarto e só nesse mês já vi dois arco-íris - ambos duplos. Um mês vivendo dessa forma foi suficiente pra que, pouco a pouco, dos meus tropeços cambaleantes se firmassem os passos e eu acreditasse que, mesmo em meio a um contexto tão conturbado, enfim as coisas caminhavam e nada poderia pará-las.

Apesar de procurar nutrir uma ingenuidade quase perigosa, sei que não há luva que resista à pressão da lâmina. Aconteceu de novo na noite que se seguiu ao segundo arco-íris.

A insônia é um preço alto a se pagar, é verdade. Quando acompanhada de um cansaço quase orgânico, borda um estranho paradoxo. Concluo sem chegar a qualquer veredito e aceito com resignação o que vier a me encontrar.

"Que lindo dia de sol!"
"Lindo, né? Mas dias de muito sol como esse são promessa de tempestade..."