sábado, 22 de março de 2014

Quando olho fundo naqueles olhos cor de hazel (ou Devaneio na biblioteca)

Sentei. Dei à bibliotecária os documentos necessários e, intimidada pela profundidade do silêncio, tratei de ocupar-me em organizar qualquer coisa na mochila, até que tudo estivesse transtorno-obsessivo-compulsivamente arrumado. Logo não me restou nada a fazer a não ser fitar o vazio e ouvir a moça teclando em seu computador. O som já me era conhecido. Dedos ligeiros apertam teclinhas de plástico, produzindo uma sequência de tec-tecs macios. Pausa. Mais tec-tecs. Arrepio quente. Memórias brotam aleatoriamente: eu brincando de secretária com minha coleguinha Camila quando criança, digitando os dados de clientes invisíveis; o joguinho virtual de somar e multiplicar que eu fazia mais pelo prazer de ouvir o som das teclas que pela vontade de treinar matemática; uma previsão particularmente boa sobre o exato momento em que estou digitando esse texto (e, ao mesmo tempo, sentindo íntima satisfação por produzir o tec-tec macio) e, talvez a minha favorita, um caixa de supermercado sem rosto definido apertando o enter repetidamente, que é o barulho que mais me agrada ouvir nesse contexto. Mas não o enter gordinho. Tem que ser aquele fino, do canto numérico do teclado, e usando apenas o dedo indicador.

Pensei então em outras coisas que produzem essa mesma sensação gostosa de cócegas na alma. Quando alguém mexe nas mechas mais inferiores do meu cabelo (nas do cocuruto às vezes incomoda). Ou desenha com um objeto não afiado pela minha pele. Quando costureira tira minhas medidas com a fita métrica, e quando médico ausculta meus pulmões. Quando dou o primeiro gole no mate gelado, quando está uma noite fria e chuvosa, e eu sob os cobertores, quando olho fundo naqueles olhos lindos, vivos, cor de hazel. 

CÓ.CE.GAS-NA-AL.MA (s.f. pl) 1. Quentura que vai subindo pela espinha, no começo quase imperceptível, mais intensa à medida que sobe, sempre sutil. Às vezes, vem acompanhada de cócegas no coração, literalmente no coração, lá dentro, onde as unhas não alcançam. Depois, o mundo inteiro encolhe, até que só sobram as cócegas na alma (e, no caso que dá nome ao texto, seu causador, bem como todo o amor por ele*). E você nem percebe que está sorrindo, às vezes de olhos fechados, até que tudo para -  não ouvia mais o som das teclas. 

Fiquei alguns segundos imóvel, frustrada, na esperança de que o som voltasse, e nada. Virei-me na direção da bibliotecária, já com a pergunta nos lábios do porquê de o tec-tec ter parado, e encontrei-a de braço estendido, lançando-me um olhar impaciente por cima dos óculos. Na ponta do braço estendido, uma mão com meus documentos. Agradeci, meio atordoada, meio encabulada, peguei meus pertences mais o livro e fui. "Quero escrever sobre isso", pensei rindo. "Ainda bem que crônicas não têm que fazer sentido. "






*Tudo que existe nesse instante é esse instante**, tudo que vejo é cada contrair-e-ampliar de pupila, alheia a tudo que não for ele (e dele).

**Se eu tivesse a pretensão de escrever um dicionário, essa seria a definição de êxtase.

Ou isto ou aquilo

Que difícil é tomar partido quando não se sabe muito bem o que é certo ou errado. Mais difícil ainda quando se sabe que certo e errado podem muito bem ser relativos. Ainda mais difícil se se pensar que certo e errado podem nem mesmo existir. Que difícil é.

Quem foi que nos ensinou que olho azul é mais bonito que olho castanho? E quem é que nos ensinaria o contrário? 

Quem é que está certo nesse mundo?

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"Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
 Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!"