domingo, 4 de dezembro de 2016

Fim de ano: um balanço

Uma das maiores alegrias desse semestre foi o despertar das mudas de íris daqui de casa, que, depois de um ano particularmente frio e difícil, resolveram juntar coragem e levar suas flores pra dar uma espiada na primavera. A íris é a flor mais tímida que eu conheço. Passa um ou dois dias em botão, pensando se vale a pena, se é seguro, se não estaria se expondo demais...  e desabrocha na manhã seguinte, meio insegura, espreguiçando as três pétalas delicadas como um pedaço de papel de seda, pra mostrar as três menores e de um roxo vivo que até então estavam escondidas, coroando um pistilinho branco - seu maior segredo e razão de ser. Mal conversa com as visitas (o quintal tem recebido muitas abelhas e joaninhas-turistas de jardins vizinhos por causa dela), trata de recolher as pétalas num gesto de pudor, enrolando-as bem apertadas, até que ao fim do mesmo dia a flor se perdeu num abraço emaranhado e aguarda serena o desprender do talo.

Hoje de manhã fui levar a Nita pra passear e vi que uma nova leva de botões havia surgido (eles são umas gotinhas afiladas e brancas, no caso da íris-da-praia, parecidos com chamas de vela congeladas), provavelmente uma das últimas desse ano, que a planta já está claramente ficando cansada. Botões são sempre um tipo de promessa de algo incrível e secreto, uma espécie de sensualidade.  Eis que, agora à tarde, procurando por algo perdido no jardim, percebo um botão perfurado, como se uma minúscula broca o tivesse violado, transpassando suas camadas mais íntimas até expor seu tesouro, o pistilo branco. Para a minha surpresa, aquele não era o único: três, cinco, sete botões seguiam o mesmo padrão, alguns já murchos, já morrendo. A minha reação imediata foi de tristeza e indignação, dado o recente ataque de pulgões sofrido pelo vaso de trevo-de-quatro-folhas. Inconformada, procurando nos buracos por uma larva, um pulgão ou algo que o valha, noto o trabalho meticuloso da abelha arapuá no botão logo ao lado. A pétala sobre a qual ela havia pousado já tinha seu buraco, assim como a de baixo e a depois dela, e a abelha se ocupava em mordiscar a próxima camada, ansiosa por encher as bolsinhas (já razoavelmente cheias, por sinal) com o pólen da íris.

De coração partido (e juro que não tenho nada em câncer no meu mapa astral), assisti enquanto a arapuá perfurava as pétalas de seda com as pequenas mandíbulas. Se ao menos eu pudesse dizer a ela que em algumas horas as íris lhes dariam de bom grado todo pólen que quisessem. Eu poderia expulsá-las, é verdade, e amanhã cedo minha vaidade seria agraciada com a visão do mar de íris abertas. Mas elas eram tão bonitas, na sua inocência faminta. Então entendi que, se o fizesse, teria de lidar com a culpa de privar as abelhas do seu possível jantar, talvez o da colmeia - sabe lá o tamanho da fome de uma abelha. Mais uma vez, olhei ao meu redor com resignação. Parece ser esse o ensinamento do ano, se é que há um. Talvez a culpa seja dessa minha mania de ver metáfora em tudo. No mínimo, a recorrência transformou o sentimento num amigo. 

Mas não me enganarei: é difícil toda vez. 



quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Barco de papel 20mg

Não foi uma mudança gradativa, como eu esperava; um dia eu acordei e simplesmente me sentia bem. Havia muito isso não acontecia. Surpresa, me agarrei à sensação - um oásis após meses em meio à areia seca -, ávida por cada segundo daquela paz sem causa concreta, mas nem por isso menos real.

Os dias que se seguiram foram mágicos, eu me sentia com catorze anos de novo. O que antes causava dor já não parecia importante, o que causava prazer agora levava a um estado de êxtase próximo à plenitude. Nunca vou esquecer de como foi confortável aquela tarde de chuva em Pirassununga - quem diria! -, os pés descalços na grama e as gotas grossas e geladas pousando na nuca, nos braços, nos olhos. Eu sentia. Sentia o vento e a água que me lavavam de dentro pra fora. Sentia o Deus que me aquecia no céu e a Deusa que me segurava na terra, embalada pela música que a natureza canta a quem se permita ouvir. 

Recuperei alguma motivação pra estudar, apesar do aumento do sono, e reencontrei prazer em escrever. Minha cachorra se sentiu segura no meu colo, estremeci de amor pelo riso provocado, as maritacas fizeram ninho no pé de manga em frente à sacada do meu quarto e só nesse mês já vi dois arco-íris - ambos duplos. Um mês vivendo dessa forma foi suficiente pra que, pouco a pouco, dos meus tropeços cambaleantes se firmassem os passos e eu acreditasse que, mesmo em meio a um contexto tão conturbado, enfim as coisas caminhavam e nada poderia pará-las.

Apesar de procurar nutrir uma ingenuidade quase perigosa, sei que não há luva que resista à pressão da lâmina. Aconteceu de novo na noite que se seguiu ao segundo arco-íris.

A insônia é um preço alto a se pagar, é verdade. Quando acompanhada de um cansaço quase orgânico, borda um estranho paradoxo. Concluo sem chegar a qualquer veredito e aceito com resignação o que vier a me encontrar.

"Que lindo dia de sol!"
"Lindo, né? Mas dias de muito sol como esse são promessa de tempestade..."

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

A trapezista

Hoje se completam quatro semanas de primavera.

Enquanto todos dormem, sentada à escrivaninha, vejo a silhueta do pé de manga vizinho recortada contra o céu das vinte e três. A porta da sacada está aberta e por ela a frescura da noite vem aliviar o sangue quente de mormaço. Ouço a chuva encontrar serena o telhado e as folhas grossas da mangueira. O cheiro é de terra, asfalto e sabonete - uma mistura tão confortável que prontamente fecho os olhos e me deixo levar pela memória da criança cujo mundo repousava silente no colo materno.

E, só por um instante, está tudo bem.


Moments of clarity are so rare
I better document this

domingo, 19 de junho de 2016

No divã

"Já se sentiu como se estivesse lavando uma louça muito suja, com a serenidade de quem sabe que o ralo estará lá para barrar os restos de passarem pelo cano e, ao lavar o último garfo, nota que o ralo tinha sido deslocado pela força da água e todos aqueles pedaços simplesmente desceram esgoto abaixo?"

"Ahn..."

"Tá, pensa numa chinchila que nasceu e cresceu dentro de uma daquelas gaiolas com grades de metal e foi solta no jardim pela primeira vez. Assim que ela encosta as patinhas na grama, percebe que não era nada daquilo que ela imaginava e tudo que ela quer é voltar pra gaiola, mas a humana que a soltou está toda satisfeita por pensar que os guinchos desesperados da chinchila são expressão da alegria de estar, pelo menos na concepção dela, livre... Entende?"

"Mais ou menos... Você seria a chinchila, a humana ou a gaiola?"

"Olha, é assim: eu olho pra uma daquelas garrafinhas de água de 500 mL sacudindo no bolso de uma mochila, sendo transportada pra algum lugar que ela não faz ideia e cuja única função é tranquilizar a consciência de um cara qualquer, já que no lugar onde ele vai existem muitos bebedouros e ele dificilmente precisará recorrer à garrafa. Eu a olho e me sinto exatamente como ela. Entendeu?"

"Entendi... Mas o que você sente?"






quinta-feira, 21 de abril de 2016

O véu da estação

Dizem ser no outono que as árvores começam a despir-se de suas folhas para dar lugar a novas. É um conceito meio eurocentrista. Em terras tupiniquins, torna-se abstrato. O que é o outono paulistano atual senão uma queda notável da temperatura, ares mais secos e uma sensível melancolia no ar?

Não há motivo, nem necessidade de havê-lo. Cheiros, cores e sabores estão o tempo todo a trazer de volta cenas do passado. O contorno desalinhado dos prédios faz lembrar uma terra distante que nunca existiu. O sol brilha no mar de rostos, como faz todo santo dia... Mas, não, agora é diferente. Agora cada alma se ilumina, um universo inteiro preso num pequeno corpo de carne. As borboletas pousadas nas pedras abrem e fecham lentamente suas asas, com um aceno compreensivo. Os violões choram, emocionados, a ouvir seu próprio som. Cada ser parece sentir em dobro, expressar-se em dobro. Cada riso é melódico, cada lágrima reluz furta-cor, a garganta constantemente enovelada. As folhas ensaiam coreografias, brotam com graça, espreguiçam-se no ar.

É tempo de silêncios prolongados e olhares carregados de sentidos. É a hora em que as pessoas contam segredos nos mais pequenos gestos. O pássaro cansado a incendiar-se, apenas para renascer das cinzas.

Quem sabe não sou apenas eu. Vai ver fora da minha cabeça os dias estão passando sem qualquer alteração, segundos a fazer girar o ponteiro dos minutos e das horas numa dança infinita e compassada. Vai ver o mundo ainda é mais ou menos o mesmo e quem mudou foram estes olhos que o observam.

É tempo de caírem as folhas, sem medo ou remorso. É o outono melancólico de uma alma a despir-se.