quarta-feira, 30 de junho de 2021

Noite sem luar (ou Lua Negra)

Toda mulher, quando nasce, é presenteada com um enorme fardo, e no meio desse fardo há sempre uma pequena chave. O fardo nem a chave têm devolução ou troca, e a mulher não pode dizer não, pois que não sabe ainda falar uma palavra que seja. Ela vai crescendo e suas perninhas se arqueiam sob o peso, e os bracinhos tateiam em vão à procura do fardo, do invisível fardo. Mas não se pode palpá-lo, apenas seguir cambaleando, fazendo o que se pode fazer, nunca o que se quer, para chegar onde se deve chegar, nunca onde se precisa.

Eis que em algum momento a mulher se percebe mulher - muito embora já lhe tenha sido apontado e enfatizado ao longo de toda a vida, e embora seja sabido por todas que não se pode palpar o fardo, ele pode ao menos ser encarado e analisado: é nesse momento que ela encontra a pequena chave. E é aí que ela tem que fazer a pergunta, ela precisa se perguntar: "o que essa chavinha abre?"

Ninguém gosta de mistérios não resolvidos. Alguns dos filmes com maior rejeição são aqueles em que algo de obscuro não foi devidamente esclarecido, ou em que pontas permaneceram soltas, sem solução, sem respostas fáceis. É angustiante carregar perguntas que nunca serão devidamente respondidas; paralelamente, porém, um dos livros mais célebres da nossa literatura tem sua fama justamente porque seu cerne, a principal questão a ser respondida, permanece sem resposta; e sua genialidade mora aí, no final penosamente subjetivo: cabe ao leitor conceber e parir a própria versão dos fatos.

Existe muito fascínio em se ter posse de uma chave e não saber o que ela abre. Algum tempo atrás, grande parte da mística de uma certa noite de ano novo envolveu um cofre muito antigo que havia no quarto da minha amiga desde antes de ela se mudar pra lá, e cujo segredo tentamos adivinhar por toda a madrugada. Nunca vamos saber o que havia naquele cofre. E isso contribui para a aura de psicodelia quase feérica que acabamos por atribuir àquela noite. Então eu encontro uma chavinha que percebo estar comigo desde sempre, e simplesmente não sei o que ela abre, e veja bem, nem quero saber!, pois o deslumbramento é um lugar muito mais seguro do que o que quer que seja a sedutora verdade. Dessa forma, a verdade ainda não é fato concreto, apenas um jogo de hipóteses pairando sobre mim e permitindo que eu imagine toda sorte de surrealidades, que é, afinal, o que mais me agrada fazer.

Mas, qual meu azar, da chavinha verte um filete inesgotável de sangue vermelho vivo. 

A visão do sangue impacta qualquer ser humano, do mais ao menos habituado. No começo, era suficiente enrolar a chave num monte de papel, cobrir com plástico e levar no bolso. Quando o sangue manchou minhas roupas, decidi deixar a chave em casa. Era somente muito tarde da noite, voltando do trabalho, que eu parava para contemplá-la: nada estancava, nada fazia parar a hemorragia. Em pouco tempo e insidiosamente tudo que me pertencia se tingia de um vermelho amarronzado. Quando ia me deitar, no escuro do quarto, surgia uma pequena porta, e por trás de uma pequena fechadura um par de furiosos olhos castanhos me encarava. Uma visão que eu, apavorada, simplesmente não conseguia mais ignorar.

Eu realmente acredito que a ignorância é uma espécie de bênção. Mas isso não é sempre verdade; não quando uma voz grita para ser vista e ouvida e é preterida por medo, um medo irracional, do que se sabe que ainda não se sabe. Eu estava sendo covarde, terrivelmente covarde. Eu sabia que o par de olhos por trás daquela porta mudaria tudo para sempre. Eu sabia que tinha que abrir a porta. Porra, eu queria saber qual força ou alma permanecia presa, deixada à míngua atrás daquela porta, um poder tão grande trancado por uma fechadura tão frágil, uma chave tão pequena. Então entendi por que aquela criatura me odiava. Na minha escolha pelo devaneio, eu me tornei a guardiã da sua liberdade, a portadora da chavinha tosca que continha um poder imensurável. Quando encaixei a pequena chave na pequena fechadura, ela parou de sangrar. 

Quando abri a porta, quem me encarava era alguém que eu havia secretamente alimentado e aprendido a aprisionar por anos, anos a fio. Seus longos cabelos emolduravam um corpo forte e esguio, sua voz erótica sussurava meu nome de modo quase vulgar.

Seus olhos são meus olhos. 

Seu ódio é meu ódio.

Seu poder sempre fora meu. 

Quando me virei e encarei o espelho, eu havia sumido, e em meu lugar um espectro diabolicamente lindo ria um riso selvagem. 




(o primeiro texto que pari depois de tantos anos tinha que ser sob fortíssima influência do Mulheres que Correm com os Lobos: não podia ser diferente.)


Edit: preciso confessar que tô muito emocionada por voltar a escrever. Nem sei explicar o que tem nas minhas lágrimas enquanto publico isso aqui.