quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

O peixe

Era mais uma das noites irritantemente cansativas que precedem uma prova.

Meus dedos faziam desenhos geométricos sobre o plástico quente do notebook aberto na matéria que eu, já exausta, tentava revisar - círculos concêntricos que aumentavam e diminuíam de diâmetro, "oitos" malucos que se sobrepunham para formar uma mandala, indo e voltando, em sentido horário...

Eu preferia colocar a atenção em um gesto repetitivo e involuntário (deveria ser, não?) a ler qualquer palavra que fosse que fizesse menção aos diagnósticos por imagem. 'Que patética é a graduação, às vezes', pensei, aliviada por escutar minha própria voz dentro da minha cabeça, no lugar da voz muda que inventamos para usar quando lemos uma dissertação em silêncio.

Olho para trás e encontro o olhar do peixe dourado, o último sobrevivente de sua espécie no microcosmos do aquário. Ted nadava insistentemente contra a parede de vidro, investindo toda a força de seu corpinho de peixe contra o invisível-intransponível. Tomava uns segundos de fôlego e novamente batia-se contra o vidro, três vezes, que é o número máximo que um peixinho aguenta se jogar contra um vidro antes de ficar cansado (o Ted quem me ensinou). Ao lado do aquário, na mesma direção em que o peixe mirava, estava o telefone. "Será que o Ted quer nadar até o telefone?", pensei. 

Imagine que, em um lampejo, eu realmente me perguntei o porquê de o peixe não conseguir nadar até o telefone, que ficava tão perto do aquário. Enquanto compreendia, senti uma pontada de pena e culpa por poder me movimentar livremente em um ambiente que o peixe podia ver, mas não podia tocar, por mais que tentasse e tentasse atravessar o portal invisível-concreto que o isolava do resto do mundo. Fui tomada pela angústia, pela sensação desesperadora e claustrofóbica de se estar presa dentro de um aquário de 50cm x 30cm, capaz de enxergar tudo que havia fora dele, mas impossibilitada de estar em qualquer desses lugares; condenada a uma prisão em que não se compreende o que a prende. Neste mesmo centésimo de segundo, me ocorreu que o único limite entre o claustro e a liberdade do Ted era que não havia água ao redor do telefone. Então, no centésimo de segundo seguinte, foi com muita satisfação que eu, surpresa com a simplicidade com que se solucionava o problema, assisti enquanto a água transbordava profusamente do aquário, escorrendo pela madeira, formando uma poça generosa no chão, que logo cresceu em inundação e alcançou os meus tornozelos. Foi quase instantaneamente que, preenchendo cada quina e cada vão, a água alcançou o teto de casa. Eu agora flutuava por sobre a cadeira, os pés mal tocando o chão, sentindo com muito alívio a água gelada me envolver o corpo. 

Olhei para trás novamente - Ted nadava a poucos centímetros do meu rosto. Qual não foi a minha alegria em perceber que eu podia tocar suas pequenas escamas douradas de peixe, da mesma forma que tocava o pelo dourado da cachorra Nita. Ele rodopiava alegremente pela sala, um mundo inteiro para explorar. Eu assistia contentemente à sua dança e sentia na pele o êxtase de se estar, relativamente ao microcosmos Aquário, livre. Talvez, só talvez, um dia o Ted não mais visse graça em ter apenas uma casa para explorar, e voltasse a bater a cabecinha contra alguma janela através da qual pudesse ver a rua. Por enquanto, pelo menos, ele estava feliz. E possivelmente sentisse a Liberdade em sua plenitude, pois tinha alcançado o espaço com o qual tanto sonhava.

Eu me empolgava em imaginar tudo que poderíamos fazer juntos. Eu também estava livre, mas do pesar de se conviver com um peixinho encarcerado. Agora, ele poderia comer na cozinha, junto com o resto da família, usar o banheiro social e até mesmo dormir na minha cama, se assim quisesse. 

Foi só quando soltei um riso empolgado que notei que o que entrava pelos meus pulmões não era ar. 
Era água.

Talvez um centésimo de segundo não seja suficiente para que um ser humano médio consiga planejar algo adequadamente. A mente tem tempo de se ocupar com o resultado que se deseja, unicamente, deixando em segundo plano as demais consequências. Não houve tempo hábil para que me ocorresse que eu não sabia respirar água, da mesma forma que o peixe não sabia nadar no ar. A sensação me fazia lembrar de quando era criança e fazia algo inofensivo pra mim, mas com uma consequência terrível que eu havia ignorado, como rabiscar de giz uma parede ou engolir uma moeda. Demorou alguns segundos para que o pânico completo se dissolvesse parcialmente pela água. Paralisada, eu ainda o observava. O peixe dourado agora nadava com menos euforia e mais tranquilidade, ciente de que não havia pressa - poderia visitar e revisitar todos os lugares mais de uma vez. O prazer evidente com que ele passeava por entre as estantes e a televisão terminou de dissipar qualquer sensação ruim que em mim ainda houvesse. O peixe estava livre, afinal. Não havia mais razão para sentir qualquer culpa ou angústia. Eu estava livre também.

Continuei imóvel e sorrindo, satisfeita, enquanto as últimas bolhas de ar sopravam tranquilamente pelos meus lábios.

sábado, 27 de maio de 2017

Heterogênea idade

Os dias têm passado à força, empurrados pelo tempo que insiste em sufocar violentamente a busca por um sopro de ar fresco, surrupiando o alívio e deixando um suspiro longo como prêmio de consolação. Ao final de cada noite, os olhos pregados no teto, deparo-me com mais um pequeno ciclo de pesos a se somarem, e cuja conta parece nunca fechar. Apesar de buscar respostas no frio, na chuva, no mês, na conjuntura, no passado, na escuridão; correlacionando dados sem qualquer precisão matemática, costurando pequenos tropeços inofensivos à procura de efeitos borboleta, teorias da conspiração, relações claras de causa e efeito; apesar de tudo isso, a conclusão é sempre cristalina, salgada, úmida.

Sou como o leite, matéria bifásica que é pura apenas à aparência. Milhares de partículas sólidas, gordurosas, suspensas em um líquido inócuo. A despeito de se tocarem, nunca se misturam. Na ânsia por ser una, espremo-as todas contra as mãos, e a mistura líquida escapa por entre os meus dedos, escorre pela minha roupa, minha pele, lembrando-me que sou o que sou - heterogênea. Presa dentro da minha própria condição, do que me dá vida e forma. Inútil procurar por uma única essência alinhada: mergulho as mãos e retiro pedaços de tudo que vivi. Ironicamente, é dentro dessa abrangência e pretensão de tudo comportar que me faço assim, vazia.

Foi-se o tempo em que busquei alguma coerência na postura humana. Por mais afiada que seja navalha das contradições, tanto fere a pele íntegra quanto reparte o pão. Sigo borboleteando, ora orgulhosa e ora envergonhada de minha condição, constantemente nauseada pelo peso dos segredos mais indigestos. Vomito-os pelas mãos, quando escrevo; pela voz, quando canto; pelos olhos, sem sucesso. Todos os meses, a lua guarda toda a dor só para si, vai se enchendo, enchendo, enchendo. Farta em seu apogeu, vomita-os todos, que alívio!, e vai murchando, murchando, murchando. Não sem alguma vaidade, transforma sua dor em um lindo, majestoso espetáculo.

Nasci cansada e apática a espetáculos. Por ora, para sumirem os sintomas, um texto publicado num blogue (coisa de gente ultrapassada) e 30 gotas de dipirona. 

segunda-feira, 13 de março de 2017

Supernova

de marte teu ser e de marte tua pele
vestindo aneis de saturno, dez dedos
escorrem provando galáxias e medos
orbito, sendo lua
satélite

entre paredes, o universo aquece
(contrai, expande, nó desatado)
o céu sem estrelas é estrelado
pelo encontro dos corpos
celestes

e valsam e saltam e rodam sem pares
escuta: o universo aquece e suspira
coroa do sol, todo o resto gira
por trás de teus olhos
solares



Hoy el sol se escondió y no quiso salir
Te vio despertar y le dio miedo de morir