sábado, 27 de maio de 2017

Heterogênea idade

Os dias têm passado à força, empurrados pelo tempo que insiste em sufocar violentamente a busca por um sopro de ar fresco, surrupiando o alívio e deixando um suspiro longo como prêmio de consolação. Ao final de cada noite, os olhos pregados no teto, deparo-me com mais um pequeno ciclo de pesos a se somarem, e cuja conta parece nunca fechar. Apesar de buscar respostas no frio, na chuva, no mês, na conjuntura, no passado, na escuridão; correlacionando dados sem qualquer precisão matemática, costurando pequenos tropeços inofensivos à procura de efeitos borboleta, teorias da conspiração, relações claras de causa e efeito; apesar de tudo isso, a conclusão é sempre cristalina, salgada, úmida.

Sou como o leite, matéria bifásica que é pura apenas à aparência. Milhares de partículas sólidas, gordurosas, suspensas em um líquido inócuo. A despeito de se tocarem, nunca se misturam. Na ânsia por ser una, espremo-as todas contra as mãos, e a mistura líquida escapa por entre os meus dedos, escorre pela minha roupa, minha pele, lembrando-me que sou o que sou - heterogênea. Presa dentro da minha própria condição, do que me dá vida e forma. Inútil procurar por uma única essência alinhada: mergulho as mãos e retiro pedaços de tudo que vivi. Ironicamente, é dentro dessa abrangência e pretensão de tudo comportar que me faço assim, vazia.

Foi-se o tempo em que busquei alguma coerência na postura humana. Por mais afiada que seja navalha das contradições, tanto fere a pele íntegra quanto reparte o pão. Sigo borboleteando, ora orgulhosa e ora envergonhada de minha condição, constantemente nauseada pelo peso dos segredos mais indigestos. Vomito-os pelas mãos, quando escrevo; pela voz, quando canto; pelos olhos, sem sucesso. Todos os meses, a lua guarda toda a dor só para si, vai se enchendo, enchendo, enchendo. Farta em seu apogeu, vomita-os todos, que alívio!, e vai murchando, murchando, murchando. Não sem alguma vaidade, transforma sua dor em um lindo, majestoso espetáculo.

Nasci cansada e apática a espetáculos. Por ora, para sumirem os sintomas, um texto publicado num blogue (coisa de gente ultrapassada) e 30 gotas de dipirona.