quinta-feira, 19 de junho de 2014

Aquela que vem do mar

A noite era fria e calma. Nada se ouvia além do bater das ondas no rochedo, uma melodia triste e ritmada. Nenhuma gaivota, nenhuma cigarra e nenhum crustáceo se atrevia a interromper a canção hipnótica. Cada pedaço de vida na praia se calava para embeber-se do som, e observar a moça de longos cabelos e expressão sombria no alto do rochedo.
Seus olhos brilhavam como dois faróis na penumbra. Ela contemplava o mar. Olhava-o com febril adoração, como um crente a seu deus. Enfim, ela o encontrara; não tinha mais medo do depois, ou do que haveria à sua espera, se é que haveria. Toda angústia, todas as perguntas e toda decepção não mais existiam. Não ali, sob o teto de água.
A moça fechou os olhos aliviada. Estendeu os braços, saudando o mar, adorando seu deus, tão acolhedor, tão piedoso... O mar a chamava; dentro dele, todas as respostas. Ela sabia disso. Angústia, perguntas e decepção, nada mais importava. Rindo, a jovem moça desatou a correr em direção à beira do rochedo, os olhos fechados, os cabelos e o pesado vestido dançando ao sabor do vento... Até que os pés perderam o chão, e seu corpo era como a mais bela gaivota, indo ao encontro das ondas. Livre como nunca antes. Livre de si mesma.
Quando tornou a abrir os olhos, viu maravilhas com as quais jamais sonhara. Seres fantásticos e cores e luzes moviam-se ao seu redor. Minutos, meses, anos se passaram. Não sentia necessidade de comer, pensar ou rezar. Quando o último sopro de ar deixou seus pulmões, quando toda ela era feita de mar, a mão enorme e viscosa vinda do profundo veio de encontro à sua. Ela estendeu os dedos murchos de sal, agradecida. Encontrara sua paz. Então, deixou de existir.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

São Paulo, 12 de junho de 2014

Era meu aniversário. E, embora, a noite fosse fria, não havia lugar mais aquecido onde eu pudesse estar. A realidade bateu-me no rosto três vezes, com carinho: eu não estava sonhando. 

Embora não me lembre do primeiro, lembro bem daquele que, por causa das borboletas no estômago, quase não dei. Pensei, caramba!, a felicidade cheira a Egeo! Éramos um e um. E agora somos um coração secreto, um doce de abóbora que virou maracujá. Não se conta porque os lábios não foram feitos pra contar, e sim pra achar tua boca (a mesma que riu tão linda na quase morte da melancia).

Contigo descobri quanta coisa cabe no tempo em que se espera esfriar os biscoitos. Notei que não há valor numa nota, e vi que, antes, eu nada via. Eu te olhei olhar pra mim, e senti que tudo tinha sentido. Decidi morrer* ali, com a Aydar adoçando o ouvido, tua boca a vinte e três milímetros, a noite que não quero que acabe nem se a virarmos.

Quem diria que o caubói laçaria meu coração. Que S J me faria lembrar de mais que Sandy e Júnior. Amo essa tua coragem de ser. Amo essa certeza de que posso acreditar em tudo que vem desses olhos que me bebem. Hey, baby!, eu te amo!

Da Meireles com um só "l", à minha verdade.



*Embora talvez concordes comigo que morrer de susto com uma freira seria mais engraçado.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

O ser e a existência

Garrafinha de Epocler entre os lábios. Olhos fechados com força, e... Nada. O cérebro grita: "engole!", mas o braço não dá nem sinal de vida. O corpo não quer, e manda dizer que nem adianta insistir.

Capítulo 10 do Nicholas aberto. Olhos varrem as palavras, obedientemente, mas a mente nada absorve. O corpo dá sinais de estresse. Não quer ler o Nicholas, quer que ele e sua genética vão para o diabo que os carregue.

Tem dia que não sou dona de mim. Apenas vivo para ser o bicho que sou.



sábado, 24 de maio de 2014

Incertezas, mas eu prefiro assim

"Era legal quando parecia que ia ser legal."

Rimos. Foi engraçado como ele pensou tão rápido, e como aquela frase resumia basicamente toda uma batalha interior. O sorriso enrugava os cantos dos olhos, que agora se enchiam d'água - dessa vez, por causa do cheiro de formol.

É mágico quando você traça um objetivo e, ao chegar lá, olha pra trás e vê que todo seu esforço, todo um plano que, por mil fatores - muitos deles extrínsecos a você -, sucedeu bem. Aí você vira e olha pra frente de novo. Até agora, a estrada fora uma. A partir desse ponto, ela se ramifica em tantas que você perde o ar, e tudo que pode fazer é ficar parada lá, bestializada. Nenhum dos caminhos te atrai, a não ser o caminho de volta. Consegui o que eu queria. Mas será que consegui o que preciso?

Duas coisas eu tenho que levar em consideração. A primeira é que eu não sou a mesma pessoa que tomou essa decisão alguns anos atrás. Aliás, essa dúvida já me corroía há algum tempo. A segunda é que uma coisa é ver um lindo pirulito de morango numa vitrine de doceria e desejá-lo, e outra é comprá-lo e levantar a sobrancelha ao perceber que ele tem gosto de óleo de rícino.

Enfim, escolhi uma trilha, e estou seguindo. Pode ser que daqui a alguns metros ela se mostre encantadora, e eu me apaixone por ela. E daqui a alguns anos eu diga, rindo, "lembra de quando eu pensei em voltar? Tsc." Ao menos, uma coisa é certa: se as coisas não melhorarem, não há chance de continuar. Se eu realmente quisesse chegar no destino que escolhi, removeria as pedras, cortaria os cipós, lutaria com as bestas, e seguiria sorrindo, incansável. O negócio é que estou me deixando tropeçar e arranhar, como desculpa para voltar atrás. Tomar outro caminho. Com medo e tudo.

Quando eu nasci, o reino todo ficou feliz. Veio uma bruxa e me amaldiçoou para sempre com angústia em todas as vésperas de aniversário.

___________________________________________________________________

"Which road do I take?" (Alice)
"Where do you want to go?" (Cat)
"I don't know," Alice answered.
"If you don't know where you are going, any road will get you there."

domingo, 11 de maio de 2014

Ouvir dizer que eu sou louca (ou o mistério do brigadeiro)

Tá, não é que eu ouvi de fato. Ninguém teve ainda a coragem de verbalizar essa levantadinha de sobrancelha quando eu falo que não gosto de brigadeiro. Entretanto, já ouvi muitos monólogos sobre quão esquisita eu sou - alguns dos quais tão bem fundamentados que dariam uma bela tese de doutorado.

Fui falar com a única pessoa que eu tinha certeza que diria só o que eu queria ouvir.

"Ô mãe, você acha que eu sou louca?"

Ela parou de cortar a cebola, olhou pra mim com aquela sobrancelhinha semi-levantada (minha mãe não consegue levantar uma só sobrancelha direito, então foi um movimento bem sensível) e eu comecei a rir tresloucadamente, porque ali estava a confirmação, mesmo que ela tenha dito "Claro que não, querida". Eu sabia que ela não entendia como podia ter feito dois filhos tão diferentes em matéria de brigadeiro, já que meu irmão come dessa bola amarronzada por ele e por mais três de mim. Infelizmente ela apenas voltou a cortar a cebola (não sou muito fã da cebola no arroz (embora eu as coma sem qualquer frescura), mas isso uma parcela maior de pessoas parece compreender).

O negócio é que jamais entenderei o que veem no doce que é paixão nacional. Não me entendam mal. Eu gosto de chocolate, gosto muito. Mas parece que, quando embrigadeirado, ele perde toda aquela parte gostosa e fica apenas com a enjoativa. Se pra mim já é difícil mandar uma bolinha pra dentro, imaginem como é interessante ver meu irmãozinho engolindo uma atrás da outra. 

Para boquiabrir ainda mais os colegas que silenciosamente me cunham de louca, já encontrei mais como eu. Vez ou outra na vida, deparo-me com alguém que também não entende como um doce tão doce possa ser tão amado. E aí geralmente trocamos sorrisos cúmplices e enchemos um pratinho com beijinhos. 

Ao menos de uma coisa vocês podem ter certeza: não fui eu quem roubou aquele brigadeiro faltante da mesa do bolo antes do parabéns.

_____________________________________________________________________


Dentre todas as coisas nas quais venho pensando, em meio a um abalo sísmico nas ideias que teve parece ter começado a entrar em velocidade constante apenas agora, é sobre isso que sinto tesão em escrever: futilidades. É bem frustrante, e não desistirei dos planos de um dia criar um debate neste blog. Apenas peço que, agora, deem a este texto a nota sarcástica que ele tem por natureza.

terça-feira, 22 de abril de 2014

P(individualismo altruísta) num espaço amostral infinito

Se o universo é infinito, e este mundo é uma dentre as infinitas possibilidades; e se todas elas estão acontecendo ao mesmo tempo, em várias dimensões; e se tudo que foi, é e será pensado aqui, nesta terra, existe ou existiu em algum lugar; se tudo que desejo e temo aconteceu a alguma das possibilidades de "eu" que há por aí, jogadas no cosmo; se assim é, então em alguma esquina do universo, numa dimensão qualquer, em um planetinha ali, de canto, existe um mundo em que todo e qualquer ato egoísta meu se reflete em um bem enorme à humanidade. Nesse planeta, só aí, a Marina pode orgulhar-se de andar com a cara virada pro próprio umbigo.

Mas não aqui. Nesse mundo, não.

sábado, 22 de março de 2014

Quando olho fundo naqueles olhos cor de hazel (ou Devaneio na biblioteca)

Sentei. Dei à bibliotecária os documentos necessários e, intimidada pela profundidade do silêncio, tratei de ocupar-me em organizar qualquer coisa na mochila, até que tudo estivesse transtorno-obsessivo-compulsivamente arrumado. Logo não me restou nada a fazer a não ser fitar o vazio e ouvir a moça teclando em seu computador. O som já me era conhecido. Dedos ligeiros apertam teclinhas de plástico, produzindo uma sequência de tec-tecs macios. Pausa. Mais tec-tecs. Arrepio quente. Memórias brotam aleatoriamente: eu brincando de secretária com minha coleguinha Camila quando criança, digitando os dados de clientes invisíveis; o joguinho virtual de somar e multiplicar que eu fazia mais pelo prazer de ouvir o som das teclas que pela vontade de treinar matemática; uma previsão particularmente boa sobre o exato momento em que estou digitando esse texto (e, ao mesmo tempo, sentindo íntima satisfação por produzir o tec-tec macio) e, talvez a minha favorita, um caixa de supermercado sem rosto definido apertando o enter repetidamente, que é o barulho que mais me agrada ouvir nesse contexto. Mas não o enter gordinho. Tem que ser aquele fino, do canto numérico do teclado, e usando apenas o dedo indicador.

Pensei então em outras coisas que produzem essa mesma sensação gostosa de cócegas na alma. Quando alguém mexe nas mechas mais inferiores do meu cabelo (nas do cocuruto às vezes incomoda). Ou desenha com um objeto não afiado pela minha pele. Quando costureira tira minhas medidas com a fita métrica, e quando médico ausculta meus pulmões. Quando dou o primeiro gole no mate gelado, quando está uma noite fria e chuvosa, e eu sob os cobertores, quando olho fundo naqueles olhos lindos, vivos, cor de hazel. 

CÓ.CE.GAS-NA-AL.MA (s.f. pl) 1. Quentura que vai subindo pela espinha, no começo quase imperceptível, mais intensa à medida que sobe, sempre sutil. Às vezes, vem acompanhada de cócegas no coração, literalmente no coração, lá dentro, onde as unhas não alcançam. Depois, o mundo inteiro encolhe, até que só sobram as cócegas na alma (e, no caso que dá nome ao texto, seu causador, bem como todo o amor por ele*). E você nem percebe que está sorrindo, às vezes de olhos fechados, até que tudo para -  não ouvia mais o som das teclas. 

Fiquei alguns segundos imóvel, frustrada, na esperança de que o som voltasse, e nada. Virei-me na direção da bibliotecária, já com a pergunta nos lábios do porquê de o tec-tec ter parado, e encontrei-a de braço estendido, lançando-me um olhar impaciente por cima dos óculos. Na ponta do braço estendido, uma mão com meus documentos. Agradeci, meio atordoada, meio encabulada, peguei meus pertences mais o livro e fui. "Quero escrever sobre isso", pensei rindo. "Ainda bem que crônicas não têm que fazer sentido. "






*Tudo que existe nesse instante é esse instante**, tudo que vejo é cada contrair-e-ampliar de pupila, alheia a tudo que não for ele (e dele).

**Se eu tivesse a pretensão de escrever um dicionário, essa seria a definição de êxtase.