segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Se eu fosse você (eu seria você)

Não é espantoso declarar que boa parte das minhas reflexões - eu, jovem paulistana universitária da classe média - tem como cenário um vagão qualquer do metrô. Ambos os percursos que costumo realizar sobre os trilhos, faculdade e casa do amado, são suficientemente longos a ponto de anestesiarem a mente, quando esta não é estimulada por um livro, uma música ou algo que o valha. Nesse estado de torpor, as ideias passam tranquilas, sem pressa, uma após a outra, em fila indiana. Às vezes, uma ideia puxa outra pela mão, desencadeando uma linha de raciocínio incrivelmente nova, inexplorada, excitante (em termos neuronais).

O fato é que eu estava a observar uma moça. Ela era alta, negra, o cabelo preso num coque no topo da cabeça, e falava ao celular. Notei quão meticulosamente pintadas estavam suas unhas, o tom animado da sua voz. O que mais me chamou atenção, no entanto, foi sua boca. Um par de lábios delineados e cheios, tão vibrantes quando comparados aos meus lábios relativamente finos, pensei. Como seria minha vida se eu tivesse uma boca como a dela? Ou, indo além: como seria minha vida se eu fosse ela?

Então essa pergunta puxou pela mão uma resposta aparentemente óbvia: ora, eu seria ela!

Pense você: se tivesse nascido em Londres, na manhã de 16 de abril de 1889, homem e filho de Charles e Hannah Chaplin, você seria ninguém menos que Charlie Chaplin!

Olhei ao meu redor, às outras pessoas no vagão. Todas elas eram possibilidades de mim, bem como eu delas. Se eu tivesse nascido aproximados trinta anos atrás, homem, filho dos pais dele, com os mesmos genes, no mesmo contexto universal, eu seria aquele cara ali, de moicano e regata, sentado do lado da janela. Se eu tivesse nascido em 19** (data não revelada porque ela não gostaria se visse), na mesma família que a minha mãe, no mesmo mundo que a minha mãe, eu seria a minha mãe, do jeito que ela é: dois filhos, mesmo visual, mesmas ideias, mesma essência; exatamente ela.

Não confio ter conseguido transmitir a minha euforia diante dessa linha de raciocínio. Parece muito óbvio quando traduzido em palavras. O lance é que todas, todas, todas (!) as pessoas que existem são possibilidades umas das outras, em diferentes contextos familiares, sociais, históricos, geográficos, etc. Talvez um jeito de enxergar seja esse: todas as pessoas são a mesma (eu, você e todo mundo), expressas dentre várias das possibilidades de existência terráquea. Só uma possibilidade é excluída, se tomarmos como dada nossa existência: a de não existirmos. Outras pessoas, no entanto, não existem e jamais existirão. Ou vai ver que não existe ninguém e esse é mais um sonho maluco de um ser alienígena qualquer.


P.S.: Não faço a menor ideia (de) se Charlie Chaplin nasceu de manhã.

domingo, 24 de maio de 2015

Bradicardia, abracadabra!

Não faz sentido o ônibus estar sempre cheio às sete e vazio às dez. O esforço para adaptar o visual ao limiar de aceitação da sociedade é enorme, pois roupas e acessórios já não têm o mesmo brilho de antes. Grudar palavras difíceis na memória de curto prazo a fim de responder a perguntas supérfluas impressas num papel parece uma ação idiota. Os olhos em nada se alteram frente a um novo caso de opressão, porque há tempos já estão escancarados ao máximo. O horizonte tem trezentos e sessenta graus e o fim é sempre este.

No entanto. No entanto...
A magia do nós em nada diminui. 

Não faz sentido o ônibus estar sempre cheio às dezoito e vazio às vinte e três.

sábado, 7 de março de 2015

Os cacos do mundo


Entender os conceitos de fraternidade e sororidade passa longe do que é senti-los. Você os sente quando abraça uma causa que não é sua, ou quando a dor de outra pessoa escorre pelos seus olhos. É algo que transcende o ego e corre ao encontro do coração des outres. É ter a coragem, pejorativamente caricaturada como "rebeldia", de encontrar o equilíbrio entre pensamento e ação. São gritos de raiva atirados numa avenida, sua própria voz se misturando no ar, dando lugar ao coro, aos gritos, e de repente cada um daqueles rostos marcados pela revolta se transforma em algo maior: uma ideologia. Construímos juntes os escudos, mas ao fim de um dia, estão dilacerados. Espinhos na televisão. Espinhos nas pessoas no metrô, espinhos sob o travesseiro. Somos menos, porém cada um de nós representa o todo, e daí vem a força fascinante dessa minoria. Somos cacos de vasos diferentes. No entanto, o desejo de liberdade nos une como uma cola super bonder.




domingo, 8 de fevereiro de 2015

A arte do encontro

"Que improvável, não?"

Sim! Improvável... 

Hoje é oito de fevereiro. No dia oito de fevereiro, alguns anos atrás, ele surgia no mundo. Outros anos depois, surgi. E nesse momento passamos a coexistir, engraçadamente sem a menor ideia da existência um do outro. Por algum tempo, vivemos absolutamente alheios a tudo que teríamos um dia. Um pensamento que não faz mais sentido, agora que temos algo tão belo.

E, se passamos a existir, foi graças a uma cadeia de acontecimentos cujo início data de antes dos meus tataravós, e antes dos tataravós dos meus tataravós; está perdido no tempo. Escolhas pessoais e eventos imprevisíveis, uma gigantesca teia de contatos, tudo culminou naquela manhã em que nossas linhas se interceptaram (darei a este ponto o nome da letra grega "alfa"). 

E se eu tivesse nascido um ano antes? Ou um ano depois? E se ele não viesse para São Paulo? Ou ainda, e se ele tivesse nascido em São Paulo? Será que teríamos nos encontrado? Será que nossos caminhos brincariam de se cruzar mesmo assim? Jamais haveremos de saber. No entanto, o improvável aconteceu: nos conhecemos. E em circunstâncias que permitiram, além de simplesmente nos conhecermos, convivermos e nos tornarmos amigos.

Todo esse raciocínio me vem à cabeça quando penso na beleza que é estar ao seu lado. Na felicidade que sinto toda vez que os olhos dele se enroscam nos meus. No quanto ele me ensina, mesmo sem querer. E em como é maravilhoso poder ser eu mesma ao lado de alguém a quem tanto amo. A sorte me sorriu; Esbarrei na vida de uma pessoa ímpar, repleta de tantas características que admiro, e que vive a se reinventar e a me surpreender. Não sei se outras trilhas caminhariam pra gente se achar, e jamais saberei. Mas, graças a essas pequenas idas e vindas, essas escolhas aparentemente inofensivas, meu caminho deu com o de um lindo matemático. E ele me ensinou que "improvável" e "impossível" não são a mesma coisa.



"A vida é a arte do encontro"
Vinícius

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Éxons

Paro a travessia no meio da faixa de pedestres para dar passagem ao carro.


Deito no chão que um dia foi a casa dela, e pela primeira vez me permito morrer de saudades. Aceito que a bolha que existe entre nós precisa desesperadoramente ser estourada. Ouço dizer por aí que tudo tem começo e fim, mas sinto que nem todo amor cabe num intervalo. 

Sei que dentro da cabeça o mundo é todo meu. Mas, às vezes, me sinto apenas uma entre sete bilhões.


"Para Marina, na esperança de vê-la tocando para mim um dia..."

domingo, 26 de outubro de 2014

Achados e perdidos

Despedi-me dele com aquela sensação ruim no abdome, como sempre. Depois de tanto tempo, o tchau ainda era amargo. Pontuava um momento que deveria ser infinito. Suspirei e subi a rua, ainda sentindo o toque dos lábios. Uma voz martelava no fundo da minha cabeça: "Você deixou algo!" Deixei? Repassei mentalmente tudo que havia trazido na bolsa; chave, bilhete, casaco, livro, garrafa vazia. Apalpei a bolsa com os dedos, só para reforçar a certeza de que tudo estava lá. 

Os quinze minutos que passei sentada no metrô foram gastos no mesmo trabalho incômodo de conferência e reconferência, dessa vez abrindo a bolsa e retirando item por item. Carteira. Cartão. Remédio. Trident sabor menta. Tudo ali. Assusto com um berro ao me levantar para deixar o trem: "Olha ali! Você tá esquecendo!" Era a voz. Sobressaltada, olho pra trás a tempo de ver o trem partindo da estação, encontrando meu assento tão vazio quanto deveria estar. Retruco, já irritada: "Esqueci o quê, sua maldita? Me deixa em paz." 

"Você deixou lá."

"Não acredito que esqueceu isso."

"Não adianta procurar que não tá na sua bolsa."

Não havia nada que eu pudesse fazer. Eu certamente deixara algo lá, não era possível. Mas o quê?!

Um banho. Eu precisava de um banho. Liguei o chuveiro e deixei o questionamento de pano de fundo por um momento. Concentrei-me apenas no que havia acontecido naquele dia. Fui gradativamente envolvida por seu cheiro, o som da sua risada e a cor de seus olhos, e na minha cabeça era abraço e risos e beijo no cocuruto. E tudo estava ali. O riso imaginário me saiu pelos lábios quando finalmente percebi o motivo da minha sensação de vazio. Eu o havia deixado lá. Havia esquecido de trazê-lo na bolsa comigo. Deixei pra trás sua casa, sua rua, o metrô que me levava até ele, o rastro do seu perfume. A voz, dessa vez, soou debochada:

"Viu, menina? Você não ia encontrar nunca nos achados e perdidos..."

domingo, 19 de outubro de 2014

(hemato)poética

Há muito tempo, antes dessa construção se tornar um condomínio de casinhas modernas, precisamente onde hoje fica o quarto em que durmo, existiu um quintal. Pequeno, escondido, um quartel general aos olhos daquela criança magricela. Às vezes, quando o sol estava bom de tomar e os joguinhos lhe aborreciam, ela pegava sua boneca Emília numa mão, o topolino de estimação na outra e saía para brincar no quintal. Um dos quatro lados que o delimitavam era um muro alto de tijolos e concreto, escuro, áspero, guardando um segredo sobre o que havia do lado oposto. Sua única fraqueza era um buraco bem no centro, como um umbigo, do tamanho de um ovo de páscoa. Frequentemente, a menina esmagava o rosto contra o buraco do muro, na esperança de enxergar mais sobre o outro lado, mas tudo que ela sempre via eram folhas compridas e escuras. A única coisa que ela sabia, então, era que do outro lado havia pelo menos uma árvore, e que aquele muro muito provavelmente era o divisor entre sua casa e um mundo encantado.

Um dia, espiando pelo buraco como costumava fazer, ela viu uma fruta. Uma pequena fruta de formato ovalado e ainda verde, pendendo de um dos galhos da árvore. A excitação foi tanta que chamou a mãe e o padrasto para dividirem com ela a alegria da descoberta. "É uma manga, filha. Essa aí é mangueira, mas a terra não é boa, não. Por isso que quase não dá manga." Ela acompanhou a epopeia da manga até o dia em que ela caiu. Simplesmente não estava mais lá. E desse dia em diante a mangueira nunca mais deu fruta, nenhumazinha. "E nunca mais dará", ela pensou. 

Demoliram a casa, derrubaram o muro que escondia a árvore e todo o resto do quintal da vizinha. Construíram o condomínio de casinhas modernas. E a sacada do meu quarto é justamente cara a cara com a mangueira. Eu a acompanhei durante todos esses anos, admirando sua altivez e suas folhas brilhantes, conformada com o fato de que ela jamais geraria qualquer outra manga. Eis que, numa tarde, ao voltar da faculdade, deparo-me com uma fruta verde e ovalada a pender de um dos galhos. Nenhuma palavra no mundo expressará o que essa visão significou para mim. É a renovação súbita da esperança. É mais sobre sentir que escrever.