domingo, 19 de outubro de 2014

(hemato)poética

Há muito tempo, antes dessa construção se tornar um condomínio de casinhas modernas, precisamente onde hoje fica o quarto em que durmo, existiu um quintal. Pequeno, escondido, um quartel general aos olhos daquela criança magricela. Às vezes, quando o sol estava bom de tomar e os joguinhos lhe aborreciam, ela pegava sua boneca Emília numa mão, o topolino de estimação na outra e saía para brincar no quintal. Um dos quatro lados que o delimitavam era um muro alto de tijolos e concreto, escuro, áspero, guardando um segredo sobre o que havia do lado oposto. Sua única fraqueza era um buraco bem no centro, como um umbigo, do tamanho de um ovo de páscoa. Frequentemente, a menina esmagava o rosto contra o buraco do muro, na esperança de enxergar mais sobre o outro lado, mas tudo que ela sempre via eram folhas compridas e escuras. A única coisa que ela sabia, então, era que do outro lado havia pelo menos uma árvore, e que aquele muro muito provavelmente era o divisor entre sua casa e um mundo encantado.

Um dia, espiando pelo buraco como costumava fazer, ela viu uma fruta. Uma pequena fruta de formato ovalado e ainda verde, pendendo de um dos galhos da árvore. A excitação foi tanta que chamou a mãe e o padrasto para dividirem com ela a alegria da descoberta. "É uma manga, filha. Essa aí é mangueira, mas a terra não é boa, não. Por isso que quase não dá manga." Ela acompanhou a epopeia da manga até o dia em que ela caiu. Simplesmente não estava mais lá. E desse dia em diante a mangueira nunca mais deu fruta, nenhumazinha. "E nunca mais dará", ela pensou. 

Demoliram a casa, derrubaram o muro que escondia a árvore e todo o resto do quintal da vizinha. Construíram o condomínio de casinhas modernas. E a sacada do meu quarto é justamente cara a cara com a mangueira. Eu a acompanhei durante todos esses anos, admirando sua altivez e suas folhas brilhantes, conformada com o fato de que ela jamais geraria qualquer outra manga. Eis que, numa tarde, ao voltar da faculdade, deparo-me com uma fruta verde e ovalada a pender de um dos galhos. Nenhuma palavra no mundo expressará o que essa visão significou para mim. É a renovação súbita da esperança. É mais sobre sentir que escrever. 

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