sábado, 24 de maio de 2014

Incertezas, mas eu prefiro assim

"Era legal quando parecia que ia ser legal."

Rimos. Foi engraçado como ele pensou tão rápido, e como aquela frase resumia basicamente toda uma batalha interior. O sorriso enrugava os cantos dos olhos, que agora se enchiam d'água - dessa vez, por causa do cheiro de formol.

É mágico quando você traça um objetivo e, ao chegar lá, olha pra trás e vê que todo seu esforço, todo um plano que, por mil fatores - muitos deles extrínsecos a você -, sucedeu bem. Aí você vira e olha pra frente de novo. Até agora, a estrada fora uma. A partir desse ponto, ela se ramifica em tantas que você perde o ar, e tudo que pode fazer é ficar parada lá, bestializada. Nenhum dos caminhos te atrai, a não ser o caminho de volta. Consegui o que eu queria. Mas será que consegui o que preciso?

Duas coisas eu tenho que levar em consideração. A primeira é que eu não sou a mesma pessoa que tomou essa decisão alguns anos atrás. Aliás, essa dúvida já me corroía há algum tempo. A segunda é que uma coisa é ver um lindo pirulito de morango numa vitrine de doceria e desejá-lo, e outra é comprá-lo e levantar a sobrancelha ao perceber que ele tem gosto de óleo de rícino.

Enfim, escolhi uma trilha, e estou seguindo. Pode ser que daqui a alguns metros ela se mostre encantadora, e eu me apaixone por ela. E daqui a alguns anos eu diga, rindo, "lembra de quando eu pensei em voltar? Tsc." Ao menos, uma coisa é certa: se as coisas não melhorarem, não há chance de continuar. Se eu realmente quisesse chegar no destino que escolhi, removeria as pedras, cortaria os cipós, lutaria com as bestas, e seguiria sorrindo, incansável. O negócio é que estou me deixando tropeçar e arranhar, como desculpa para voltar atrás. Tomar outro caminho. Com medo e tudo.

Quando eu nasci, o reino todo ficou feliz. Veio uma bruxa e me amaldiçoou para sempre com angústia em todas as vésperas de aniversário.

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"Which road do I take?" (Alice)
"Where do you want to go?" (Cat)
"I don't know," Alice answered.
"If you don't know where you are going, any road will get you there."

domingo, 11 de maio de 2014

Ouvir dizer que eu sou louca (ou o mistério do brigadeiro)

Tá, não é que eu ouvi de fato. Ninguém teve ainda a coragem de verbalizar essa levantadinha de sobrancelha quando eu falo que não gosto de brigadeiro. Entretanto, já ouvi muitos monólogos sobre quão esquisita eu sou - alguns dos quais tão bem fundamentados que dariam uma bela tese de doutorado.

Fui falar com a única pessoa que eu tinha certeza que diria só o que eu queria ouvir.

"Ô mãe, você acha que eu sou louca?"

Ela parou de cortar a cebola, olhou pra mim com aquela sobrancelhinha semi-levantada (minha mãe não consegue levantar uma só sobrancelha direito, então foi um movimento bem sensível) e eu comecei a rir tresloucadamente, porque ali estava a confirmação, mesmo que ela tenha dito "Claro que não, querida". Eu sabia que ela não entendia como podia ter feito dois filhos tão diferentes em matéria de brigadeiro, já que meu irmão come dessa bola amarronzada por ele e por mais três de mim. Infelizmente ela apenas voltou a cortar a cebola (não sou muito fã da cebola no arroz (embora eu as coma sem qualquer frescura), mas isso uma parcela maior de pessoas parece compreender).

O negócio é que jamais entenderei o que veem no doce que é paixão nacional. Não me entendam mal. Eu gosto de chocolate, gosto muito. Mas parece que, quando embrigadeirado, ele perde toda aquela parte gostosa e fica apenas com a enjoativa. Se pra mim já é difícil mandar uma bolinha pra dentro, imaginem como é interessante ver meu irmãozinho engolindo uma atrás da outra. 

Para boquiabrir ainda mais os colegas que silenciosamente me cunham de louca, já encontrei mais como eu. Vez ou outra na vida, deparo-me com alguém que também não entende como um doce tão doce possa ser tão amado. E aí geralmente trocamos sorrisos cúmplices e enchemos um pratinho com beijinhos. 

Ao menos de uma coisa vocês podem ter certeza: não fui eu quem roubou aquele brigadeiro faltante da mesa do bolo antes do parabéns.

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Dentre todas as coisas nas quais venho pensando, em meio a um abalo sísmico nas ideias que teve parece ter começado a entrar em velocidade constante apenas agora, é sobre isso que sinto tesão em escrever: futilidades. É bem frustrante, e não desistirei dos planos de um dia criar um debate neste blog. Apenas peço que, agora, deem a este texto a nota sarcástica que ele tem por natureza.

terça-feira, 22 de abril de 2014

P(individualismo altruísta) num espaço amostral infinito

Se o universo é infinito, e este mundo é uma dentre as infinitas possibilidades; e se todas elas estão acontecendo ao mesmo tempo, em várias dimensões; e se tudo que foi, é e será pensado aqui, nesta terra, existe ou existiu em algum lugar; se tudo que desejo e temo aconteceu a alguma das possibilidades de "eu" que há por aí, jogadas no cosmo; se assim é, então em alguma esquina do universo, numa dimensão qualquer, em um planetinha ali, de canto, existe um mundo em que todo e qualquer ato egoísta meu se reflete em um bem enorme à humanidade. Nesse planeta, só aí, a Marina pode orgulhar-se de andar com a cara virada pro próprio umbigo.

Mas não aqui. Nesse mundo, não.

sábado, 22 de março de 2014

Quando olho fundo naqueles olhos cor de hazel (ou Devaneio na biblioteca)

Sentei. Dei à bibliotecária os documentos necessários e, intimidada pela profundidade do silêncio, tratei de ocupar-me em organizar qualquer coisa na mochila, até que tudo estivesse transtorno-obsessivo-compulsivamente arrumado. Logo não me restou nada a fazer a não ser fitar o vazio e ouvir a moça teclando em seu computador. O som já me era conhecido. Dedos ligeiros apertam teclinhas de plástico, produzindo uma sequência de tec-tecs macios. Pausa. Mais tec-tecs. Arrepio quente. Memórias brotam aleatoriamente: eu brincando de secretária com minha coleguinha Camila quando criança, digitando os dados de clientes invisíveis; o joguinho virtual de somar e multiplicar que eu fazia mais pelo prazer de ouvir o som das teclas que pela vontade de treinar matemática; uma previsão particularmente boa sobre o exato momento em que estou digitando esse texto (e, ao mesmo tempo, sentindo íntima satisfação por produzir o tec-tec macio) e, talvez a minha favorita, um caixa de supermercado sem rosto definido apertando o enter repetidamente, que é o barulho que mais me agrada ouvir nesse contexto. Mas não o enter gordinho. Tem que ser aquele fino, do canto numérico do teclado, e usando apenas o dedo indicador.

Pensei então em outras coisas que produzem essa mesma sensação gostosa de cócegas na alma. Quando alguém mexe nas mechas mais inferiores do meu cabelo (nas do cocuruto às vezes incomoda). Ou desenha com um objeto não afiado pela minha pele. Quando costureira tira minhas medidas com a fita métrica, e quando médico ausculta meus pulmões. Quando dou o primeiro gole no mate gelado, quando está uma noite fria e chuvosa, e eu sob os cobertores, quando olho fundo naqueles olhos lindos, vivos, cor de hazel. 

CÓ.CE.GAS-NA-AL.MA (s.f. pl) 1. Quentura que vai subindo pela espinha, no começo quase imperceptível, mais intensa à medida que sobe, sempre sutil. Às vezes, vem acompanhada de cócegas no coração, literalmente no coração, lá dentro, onde as unhas não alcançam. Depois, o mundo inteiro encolhe, até que só sobram as cócegas na alma (e, no caso que dá nome ao texto, seu causador, bem como todo o amor por ele*). E você nem percebe que está sorrindo, às vezes de olhos fechados, até que tudo para -  não ouvia mais o som das teclas. 

Fiquei alguns segundos imóvel, frustrada, na esperança de que o som voltasse, e nada. Virei-me na direção da bibliotecária, já com a pergunta nos lábios do porquê de o tec-tec ter parado, e encontrei-a de braço estendido, lançando-me um olhar impaciente por cima dos óculos. Na ponta do braço estendido, uma mão com meus documentos. Agradeci, meio atordoada, meio encabulada, peguei meus pertences mais o livro e fui. "Quero escrever sobre isso", pensei rindo. "Ainda bem que crônicas não têm que fazer sentido. "






*Tudo que existe nesse instante é esse instante**, tudo que vejo é cada contrair-e-ampliar de pupila, alheia a tudo que não for ele (e dele).

**Se eu tivesse a pretensão de escrever um dicionário, essa seria a definição de êxtase.

Ou isto ou aquilo

Que difícil é tomar partido quando não se sabe muito bem o que é certo ou errado. Mais difícil ainda quando se sabe que certo e errado podem muito bem ser relativos. Ainda mais difícil se se pensar que certo e errado podem nem mesmo existir. Que difícil é.

Quem foi que nos ensinou que olho azul é mais bonito que olho castanho? E quem é que nos ensinaria o contrário? 

Quem é que está certo nesse mundo?

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"Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
 Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!"

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Das pessoas que não conheci

Entro no metrô na estação Patriarca. O horário e o dia da semana permitem que eu amplie consideravelmente o raio do meu espaço pessoal. Acho um canto onde possa passar despercebida, coloco os fones de ouvido e, incomunicável, concentro-me em copiar a expressão neutra e distante dos meus companheiros de vagão. Como um camaleão, assumo a aparência da parede às minhas costas. Viro paisagem.

É aí que sinto algo quente e macio no meu braço. Constato, espantada, que é calor humano. Um bebê, sentado no colo da mãe, mexe curiosamente nas minhas pulseiras. No mesmo instante, abro aquele sorriso bobo que só bebês e animais arrancam da gente. Ofereço-lhe um dedo, que ela toma entre as mãozinhas. Tudo lhe é comoventemente novo e encantador. Sem olhar pra mim, a mãe puxa o braço da menina. Tenho vontade de dizer “Não está incomodando!”, mas as palavras param na metade do caminho. 

Entra um homem alto, de terno, carregando uma pasta, e para bem de frente pra mim. Seu olhar encontra o da menina, e o sorriso bobo aparece nele também. Será que o bebê o fazia lembrar de alguém? Talvez de sua própria filha? De sua irmã caçula? Penso em perguntar o que está tocando nos seus fones de ouvido, mas nada falo. Desço na estação Sé.

Dúzias de pessoas atravessam meu caminho; desvio de cada uma delas. Ninguém parece perceber minha presença, de qualquer forma. Estão todas concentradas em passarem despercebidas, tentando seguir seu trajeto sem cruzá-lo com o de ninguém. Sinto um cutucão no braço – é um rapaz se oferecendo para segurar minha bolsa. Digo-lhe que já vou descer, ainda que faltem seis estações, por um receio estúpido e infundamentado de interagir com outros seres de minha espécie. 

O trem volta a andar justamente no momento em que me preparo para sentar num banco vazio: caio na senhora ao lado. Ela, assustada por ser chamada de volta de seu mundo interno, abre uma carranca, que se dissolve poucos segundos depois, quando ela (ao som de uma profusão de pedidos de perdão da minha parte) processa o ocorrido. Antes que eu junte coragem suficiente para dizer-lhe que gostei da sua camiseta, o trem para e ela desce. Não sem quase cair em cima de mim, devo acrescentar.

Em menos de uma hora, tive a chance de conhecer tantas, tantas pessoas, e a única à qual dei ouvidos foi Dave Matthews, que cantava pelos meus fones. De quantas informações me privei? Em que medida deixei de conhecer pessoas valiosas em prol de minha própria segurança? Sei que nem todo mundo é bem intencionado. Sei que muitos poderiam interpretar uma iniciativa de conversa como interesse sexual, por mais absurdo que isso me pareça. Mas não é nada disso. É curiosidade, é vontade de ampliar o conceito turvo e subnutrido que tenho do que é a vida.

Chego ao meu destino. Avisto-o, e nada mais penso sobre o metrô ou as pessoas que não conheci. Sorrio.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Por que escrevo?

Sempre que tento escrever um texto argumentativo pra esse blog, travo. Este ia ser sobre punições corporais (fica pra mais tarde, quando eu estiver menos passional), mas, bom, não é. É sobre minha história de amor com as palavras. Era uma vez...

Não vou dizer que sempre gostei de escrever, não é verdade. Mas posso dizer, sim, que sempre gostei de ler. Aprendi cedo, aos quatro anos, e não só porque as tias da escolinha me faziam repetir as letras do abecê que ficavam grudadas na parede da sala ("efe de faca, gê de galinha, agá de helicóptero"), mas porque eu queria entender o que todos aqueles letreiros no shopping queriam dizer. Pois é, eu fui uma consumistazinha.

Quem me ensinou a magia para decifrar todos aqueles códigos, mesmo, mesmo, foi minha avó materna. Nós passávamos as tardes juntas, porque minha mãe trabalhava o dia todo. Eu me lembro muito bem de sentar no colo dela, caderno e caneta em mãos, e tentar copiar a palavra "porta", que ela escreveu com letra cursiva, na caligrafia mais didática que conseguiu. Eu fazia a letra "o" ao contrário, e só conseguia fazer o "p" maiúsculo - o minúsculo demorou anos a sair. Lembro disso mesmo sendo tão pequena porque foi como descobrir o mundo. E de fato eu descobri.

Quando cresci um pouco, comecei a ter aulas de redação na escola; pronto, nascia a paixão. O maior orgulho da vida era quando a professora lia meu texto em voz alta. Ficava com vergonha, também, porque soava muito mais bobo do que quando eu tinha escrito, e pensava que meus colegas iam me achar uma tonta (mais ou menos o sentimento que tenho ao postar um texto nesse blog). 

De qualquer forma, a vontade sempre foi produzir o texto perfeito, e é claro que eu nunca consegui. Mas o prazer de encontrar a palavra perfeita, de criar a metáfora perfeita, de usar a mesóclise, esse que me motivou a escrever. Meu caderno de Português sempre foi mais bonito, mais colorido que os outros - isso antes de eu conhecer a Biologia. Os dois cadernos competiram desde então em estética e conteúdo -, atividades de conjugação verbal (isso, aquela do "Eu canto, tu cantas, ele canta", que todo mundo acha um saco) eram um prazer.

Amo fazer o que estou fazendo agora. O ato de escrever está para mim como a bebida para um alcoólatra. Não saberia viver sem escrever - já está provado que a abstinência traz irritação e inquietude. Notem que o amor ao ofício não leva necessariamente a um trabalho bom (não me considero uma boa escritora, mas pretendo ser. Tenham paciência), mas faz com que cada palavra seja escolhida com capricho. Escrevo porque preciso escrever. Tenho que escrever. Escrever por escrever.


“Escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando…”

Clarice Lispector (Pelo menos é o que dizem. Não colocaria minha mão no fogo pelas referências)