segunda-feira, 13 de março de 2017

Supernova

de marte teu ser e de marte tua pele
vestindo aneis de saturno, dez dedos
escorrem provando galáxias e medos
orbito, sendo lua
satélite

entre paredes, o universo aquece
(contrai, expande, nó desatado)
o céu sem estrelas é estrelado
pelo encontro dos corpos
celestes

e valsam e saltam e rodam sem pares
escuta: o universo aquece e suspira
coroa do sol, todo o resto gira
por trás de teus olhos
solares



Hoy el sol se escondió y no quiso salir
Te vio despertar y le dio miedo de morir

domingo, 4 de dezembro de 2016

Fim de ano: um balanço

Uma das maiores alegrias desse semestre foi o despertar das mudas de íris daqui de casa, que, depois de um ano particularmente frio e difícil, resolveram juntar coragem e levar suas flores pra dar uma espiada na primavera. A íris é a flor mais tímida que eu conheço. Passa um ou dois dias em botão, pensando se vale a pena, se é seguro, se não estaria se expondo demais...  e desabrocha na manhã seguinte, meio insegura, espreguiçando as três pétalas delicadas como um pedaço de papel de seda, pra mostrar as três menores e de um roxo vivo que até então estavam escondidas, coroando um pistilinho branco - seu maior segredo e razão de ser. Mal conversa com as visitas (o quintal tem recebido muitas abelhas e joaninhas-turistas de jardins vizinhos por causa dela), trata de recolher as pétalas num gesto de pudor, enrolando-as bem apertadas, até que ao fim do mesmo dia a flor se perdeu num abraço emaranhado e aguarda serena o desprender do talo.

Hoje de manhã fui levar a Nita pra passear e vi que uma nova leva de botões havia surgido (eles são umas gotinhas afiladas e brancas, no caso da íris-da-praia, parecidos com chamas de vela congeladas), provavelmente uma das últimas desse ano, que a planta já está claramente ficando cansada. Botões são sempre um tipo de promessa de algo incrível e secreto, uma espécie de sensualidade.  Eis que, agora à tarde, procurando por algo perdido no jardim, percebo um botão perfurado, como se uma minúscula broca o tivesse violado, transpassando suas camadas mais íntimas até expor seu tesouro, o pistilo branco. Para a minha surpresa, aquele não era o único: três, cinco, sete botões seguiam o mesmo padrão, alguns já murchos, já morrendo. A minha reação imediata foi de tristeza e indignação, dado o recente ataque de pulgões sofrido pelo vaso de trevo-de-quatro-folhas. Inconformada, procurando nos buracos por uma larva, um pulgão ou algo que o valha, noto o trabalho meticuloso da abelha arapuá no botão logo ao lado. A pétala sobre a qual ela havia pousado já tinha seu buraco, assim como a de baixo e a depois dela, e a abelha se ocupava em mordiscar a próxima camada, ansiosa por encher as bolsinhas (já razoavelmente cheias, por sinal) com o pólen da íris.

De coração partido (e juro que não tenho nada em câncer no meu mapa astral), assisti enquanto a arapuá perfurava as pétalas de seda com as pequenas mandíbulas. Se ao menos eu pudesse dizer a ela que em algumas horas as íris lhes dariam de bom grado todo pólen que quisessem. Eu poderia expulsá-las, é verdade, e amanhã cedo minha vaidade seria agraciada com a visão do mar de íris abertas. Mas elas eram tão bonitas, na sua inocência faminta. Então entendi que, se o fizesse, teria de lidar com a culpa de privar as abelhas do seu possível jantar, talvez o da colmeia - sabe lá o tamanho da fome de uma abelha. Mais uma vez, olhei ao meu redor com resignação. Parece ser esse o ensinamento do ano, se é que há um. Talvez a culpa seja dessa minha mania de ver metáfora em tudo. No mínimo, a recorrência transformou o sentimento num amigo. 

Mas não me enganarei: é difícil toda vez. 



quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Barco de papel 20mg

Não foi uma mudança gradativa, como eu esperava; um dia eu acordei e simplesmente me sentia bem. Havia muito isso não acontecia. Surpresa, me agarrei à sensação - um oásis após meses em meio à areia seca -, ávida por cada segundo daquela paz sem causa concreta, mas nem por isso menos real.

Os dias que se seguiram foram mágicos, eu me sentia com catorze anos de novo. O que antes causava dor já não parecia importante, o que causava prazer agora levava a um estado de êxtase próximo à plenitude. Nunca vou esquecer de como foi confortável aquela tarde de chuva em Pirassununga - quem diria! -, os pés descalços na grama e as gotas grossas e geladas pousando na nuca, nos braços, nos olhos. Eu sentia. Sentia o vento e a água que me lavavam de dentro pra fora. Sentia o Deus que me aquecia no céu e a Deusa que me segurava na terra, embalada pela música que a natureza canta a quem se permita ouvir. 

Recuperei alguma motivação pra estudar, apesar do aumento do sono, e reencontrei prazer em escrever. Minha cachorra se sentiu segura no meu colo, estremeci de amor pelo riso provocado, as maritacas fizeram ninho no pé de manga em frente à sacada do meu quarto e só nesse mês já vi dois arco-íris - ambos duplos. Um mês vivendo dessa forma foi suficiente pra que, pouco a pouco, dos meus tropeços cambaleantes se firmassem os passos e eu acreditasse que, mesmo em meio a um contexto tão conturbado, enfim as coisas caminhavam e nada poderia pará-las.

Apesar de procurar nutrir uma ingenuidade quase perigosa, sei que não há luva que resista à pressão da lâmina. Aconteceu de novo na noite que se seguiu ao segundo arco-íris.

A insônia é um preço alto a se pagar, é verdade. Quando acompanhada de um cansaço quase orgânico, borda um estranho paradoxo. Concluo sem chegar a qualquer veredito e aceito com resignação o que vier a me encontrar.

"Que lindo dia de sol!"
"Lindo, né? Mas dias de muito sol como esse são promessa de tempestade..."

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

A trapezista

Hoje se completam quatro semanas de primavera.

Enquanto todos dormem, sentada à escrivaninha, vejo a silhueta do pé de manga vizinho recortada contra o céu das vinte e três. A porta da sacada está aberta e por ela a frescura da noite vem aliviar o sangue quente de mormaço. Ouço a chuva encontrar serena o telhado e as folhas grossas da mangueira. O cheiro é de terra, asfalto e sabonete - uma mistura tão confortável que prontamente fecho os olhos e me deixo levar pela memória da criança cujo mundo repousava silente no colo materno.

E, só por um instante, está tudo bem.


Moments of clarity are so rare
I better document this

domingo, 19 de junho de 2016

No divã

"Já se sentiu como se estivesse lavando uma louça muito suja, com a serenidade de quem sabe que o ralo estará lá para barrar os restos de passarem pelo cano e, ao lavar o último garfo, nota que o ralo tinha sido deslocado pela força da água e todos aqueles pedaços simplesmente desceram esgoto abaixo?"

"Ahn..."

"Tá, pensa numa chinchila que nasceu e cresceu dentro de uma daquelas gaiolas com grades de metal e foi solta no jardim pela primeira vez. Assim que ela encosta as patinhas na grama, percebe que não era nada daquilo que ela imaginava e tudo que ela quer é voltar pra gaiola, mas a humana que a soltou está toda satisfeita por pensar que os guinchos desesperados da chinchila são expressão da alegria de estar, pelo menos na concepção dela, livre... Entende?"

"Mais ou menos... Você seria a chinchila, a humana ou a gaiola?"

"Olha, é assim: eu olho pra uma daquelas garrafinhas de água de 500 mL sacudindo no bolso de uma mochila, sendo transportada pra algum lugar que ela não faz ideia e cuja única função é tranquilizar a consciência de um cara qualquer, já que no lugar onde ele vai existem muitos bebedouros e ele dificilmente precisará recorrer à garrafa. Eu a olho e me sinto exatamente como ela. Entendeu?"

"Entendi... Mas o que você sente?"






quinta-feira, 21 de abril de 2016

O véu da estação

Dizem ser no outono que as árvores começam a despir-se de suas folhas para dar lugar a novas. É um conceito meio eurocentrista. Em terras tupiniquins, torna-se abstrato. O que é o outono paulistano atual senão uma queda notável da temperatura, ares mais secos e uma sensível melancolia no ar?

Não há motivo, nem necessidade de havê-lo. Cheiros, cores e sabores estão o tempo todo a trazer de volta cenas do passado. O contorno desalinhado dos prédios faz lembrar uma terra distante que nunca existiu. O sol brilha no mar de rostos, como faz todo santo dia... Mas, não, agora é diferente. Agora cada alma se ilumina, um universo inteiro preso num pequeno corpo de carne. As borboletas pousadas nas pedras abrem e fecham lentamente suas asas, com um aceno compreensivo. Os violões choram, emocionados, a ouvir seu próprio som. Cada ser parece sentir em dobro, expressar-se em dobro. Cada riso é melódico, cada lágrima reluz furta-cor, a garganta constantemente enovelada. As folhas ensaiam coreografias, brotam com graça, espreguiçam-se no ar.

É tempo de silêncios prolongados e olhares carregados de sentidos. É a hora em que as pessoas contam segredos nos mais pequenos gestos. O pássaro cansado a incendiar-se, apenas para renascer das cinzas.

Quem sabe não sou apenas eu. Vai ver fora da minha cabeça os dias estão passando sem qualquer alteração, segundos a fazer girar o ponteiro dos minutos e das horas numa dança infinita e compassada. Vai ver o mundo ainda é mais ou menos o mesmo e quem mudou foram estes olhos que o observam.

É tempo de caírem as folhas, sem medo ou remorso. É o outono melancólico de uma alma a despir-se.


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Se eu fosse você (eu seria você)

Não é espantoso declarar que boa parte das minhas reflexões - eu, jovem paulistana universitária da classe média - tem como cenário um vagão qualquer do metrô. Ambos os percursos que costumo realizar sobre os trilhos, faculdade e casa do amado, são suficientemente longos a ponto de anestesiarem a mente, quando esta não é estimulada por um livro, uma música ou algo que o valha. Nesse estado de torpor, as ideias passam tranquilas, sem pressa, uma após a outra, em fila indiana. Às vezes, uma ideia puxa outra pela mão, desencadeando uma linha de raciocínio incrivelmente nova, inexplorada, excitante (em termos neuronais).

O fato é que eu estava a observar uma moça. Ela era alta, negra, o cabelo preso num coque no topo da cabeça, e falava ao celular. Notei quão meticulosamente pintadas estavam suas unhas, o tom animado da sua voz. O que mais me chamou atenção, no entanto, foi sua boca. Um par de lábios delineados e cheios, tão vibrantes quando comparados aos meus lábios relativamente finos, pensei. Como seria minha vida se eu tivesse uma boca como a dela? Ou, indo além: como seria minha vida se eu fosse ela?

Então essa pergunta puxou pela mão uma resposta aparentemente óbvia: ora, eu seria ela!

Pense você: se tivesse nascido em Londres, na manhã de 16 de abril de 1889, homem e filho de Charles e Hannah Chaplin, você seria ninguém menos que Charlie Chaplin!

Olhei ao meu redor, às outras pessoas no vagão. Todas elas eram possibilidades de mim, bem como eu delas. Se eu tivesse nascido aproximados trinta anos atrás, homem, filho dos pais dele, com os mesmos genes, no mesmo contexto universal, eu seria aquele cara ali, de moicano e regata, sentado do lado da janela. Se eu tivesse nascido em 19** (data não revelada porque ela não gostaria se visse), na mesma família que a minha mãe, no mesmo mundo que a minha mãe, eu seria a minha mãe, do jeito que ela é: dois filhos, mesmo visual, mesmas ideias, mesma essência; exatamente ela.

Não confio ter conseguido transmitir a minha euforia diante dessa linha de raciocínio. Parece muito óbvio quando traduzido em palavras. O lance é que todas, todas, todas (!) as pessoas que existem são possibilidades umas das outras, em diferentes contextos familiares, sociais, históricos, geográficos, etc. Talvez um jeito de enxergar seja esse: todas as pessoas são a mesma (eu, você e todo mundo), expressas dentre várias das possibilidades de existência terráquea. Só uma possibilidade é excluída, se tomarmos como dada nossa existência: a de não existirmos. Outras pessoas, no entanto, não existem e jamais existirão. Ou vai ver que não existe ninguém e esse é mais um sonho maluco de um ser alienígena qualquer.


P.S.: Não faço a menor ideia (de) se Charlie Chaplin nasceu de manhã.