terça-feira, 22 de abril de 2014

P(individualismo altruísta) num espaço amostral infinito

Se o universo é infinito, e este mundo é uma dentre as infinitas possibilidades; e se todas elas estão acontecendo ao mesmo tempo, em várias dimensões; e se tudo que foi, é e será pensado aqui, nesta terra, existe ou existiu em algum lugar; se tudo que desejo e temo aconteceu a alguma das possibilidades de "eu" que há por aí, jogadas no cosmo; se assim é, então em alguma esquina do universo, numa dimensão qualquer, em um planetinha ali, de canto, existe um mundo em que todo e qualquer ato egoísta meu se reflete em um bem enorme à humanidade. Nesse planeta, só aí, a Marina pode orgulhar-se de andar com a cara virada pro próprio umbigo.

Mas não aqui. Nesse mundo, não.

sábado, 22 de março de 2014

Quando olho fundo naqueles olhos cor de hazel (ou Devaneio na biblioteca)

Sentei. Dei à bibliotecária os documentos necessários e, intimidada pela profundidade do silêncio, tratei de ocupar-me em organizar qualquer coisa na mochila, até que tudo estivesse transtorno-obsessivo-compulsivamente arrumado. Logo não me restou nada a fazer a não ser fitar o vazio e ouvir a moça teclando em seu computador. O som já me era conhecido. Dedos ligeiros apertam teclinhas de plástico, produzindo uma sequência de tec-tecs macios. Pausa. Mais tec-tecs. Arrepio quente. Memórias brotam aleatoriamente: eu brincando de secretária com minha coleguinha Camila quando criança, digitando os dados de clientes invisíveis; o joguinho virtual de somar e multiplicar que eu fazia mais pelo prazer de ouvir o som das teclas que pela vontade de treinar matemática; uma previsão particularmente boa sobre o exato momento em que estou digitando esse texto (e, ao mesmo tempo, sentindo íntima satisfação por produzir o tec-tec macio) e, talvez a minha favorita, um caixa de supermercado sem rosto definido apertando o enter repetidamente, que é o barulho que mais me agrada ouvir nesse contexto. Mas não o enter gordinho. Tem que ser aquele fino, do canto numérico do teclado, e usando apenas o dedo indicador.

Pensei então em outras coisas que produzem essa mesma sensação gostosa de cócegas na alma. Quando alguém mexe nas mechas mais inferiores do meu cabelo (nas do cocuruto às vezes incomoda). Ou desenha com um objeto não afiado pela minha pele. Quando costureira tira minhas medidas com a fita métrica, e quando médico ausculta meus pulmões. Quando dou o primeiro gole no mate gelado, quando está uma noite fria e chuvosa, e eu sob os cobertores, quando olho fundo naqueles olhos lindos, vivos, cor de hazel. 

CÓ.CE.GAS-NA-AL.MA (s.f. pl) 1. Quentura que vai subindo pela espinha, no começo quase imperceptível, mais intensa à medida que sobe, sempre sutil. Às vezes, vem acompanhada de cócegas no coração, literalmente no coração, lá dentro, onde as unhas não alcançam. Depois, o mundo inteiro encolhe, até que só sobram as cócegas na alma (e, no caso que dá nome ao texto, seu causador, bem como todo o amor por ele*). E você nem percebe que está sorrindo, às vezes de olhos fechados, até que tudo para -  não ouvia mais o som das teclas. 

Fiquei alguns segundos imóvel, frustrada, na esperança de que o som voltasse, e nada. Virei-me na direção da bibliotecária, já com a pergunta nos lábios do porquê de o tec-tec ter parado, e encontrei-a de braço estendido, lançando-me um olhar impaciente por cima dos óculos. Na ponta do braço estendido, uma mão com meus documentos. Agradeci, meio atordoada, meio encabulada, peguei meus pertences mais o livro e fui. "Quero escrever sobre isso", pensei rindo. "Ainda bem que crônicas não têm que fazer sentido. "






*Tudo que existe nesse instante é esse instante**, tudo que vejo é cada contrair-e-ampliar de pupila, alheia a tudo que não for ele (e dele).

**Se eu tivesse a pretensão de escrever um dicionário, essa seria a definição de êxtase.

Ou isto ou aquilo

Que difícil é tomar partido quando não se sabe muito bem o que é certo ou errado. Mais difícil ainda quando se sabe que certo e errado podem muito bem ser relativos. Ainda mais difícil se se pensar que certo e errado podem nem mesmo existir. Que difícil é.

Quem foi que nos ensinou que olho azul é mais bonito que olho castanho? E quem é que nos ensinaria o contrário? 

Quem é que está certo nesse mundo?

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"Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
 Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!"

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Das pessoas que não conheci

Entro no metrô na estação Patriarca. O horário e o dia da semana permitem que eu amplie consideravelmente o raio do meu espaço pessoal. Acho um canto onde possa passar despercebida, coloco os fones de ouvido e, incomunicável, concentro-me em copiar a expressão neutra e distante dos meus companheiros de vagão. Como um camaleão, assumo a aparência da parede às minhas costas. Viro paisagem.

É aí que sinto algo quente e macio no meu braço. Constato, espantada, que é calor humano. Um bebê, sentado no colo da mãe, mexe curiosamente nas minhas pulseiras. No mesmo instante, abro aquele sorriso bobo que só bebês e animais arrancam da gente. Ofereço-lhe um dedo, que ela toma entre as mãozinhas. Tudo lhe é comoventemente novo e encantador. Sem olhar pra mim, a mãe puxa o braço da menina. Tenho vontade de dizer “Não está incomodando!”, mas as palavras param na metade do caminho. 

Entra um homem alto, de terno, carregando uma pasta, e para bem de frente pra mim. Seu olhar encontra o da menina, e o sorriso bobo aparece nele também. Será que o bebê o fazia lembrar de alguém? Talvez de sua própria filha? De sua irmã caçula? Penso em perguntar o que está tocando nos seus fones de ouvido, mas nada falo. Desço na estação Sé.

Dúzias de pessoas atravessam meu caminho; desvio de cada uma delas. Ninguém parece perceber minha presença, de qualquer forma. Estão todas concentradas em passarem despercebidas, tentando seguir seu trajeto sem cruzá-lo com o de ninguém. Sinto um cutucão no braço – é um rapaz se oferecendo para segurar minha bolsa. Digo-lhe que já vou descer, ainda que faltem seis estações, por um receio estúpido e infundamentado de interagir com outros seres de minha espécie. 

O trem volta a andar justamente no momento em que me preparo para sentar num banco vazio: caio na senhora ao lado. Ela, assustada por ser chamada de volta de seu mundo interno, abre uma carranca, que se dissolve poucos segundos depois, quando ela (ao som de uma profusão de pedidos de perdão da minha parte) processa o ocorrido. Antes que eu junte coragem suficiente para dizer-lhe que gostei da sua camiseta, o trem para e ela desce. Não sem quase cair em cima de mim, devo acrescentar.

Em menos de uma hora, tive a chance de conhecer tantas, tantas pessoas, e a única à qual dei ouvidos foi Dave Matthews, que cantava pelos meus fones. De quantas informações me privei? Em que medida deixei de conhecer pessoas valiosas em prol de minha própria segurança? Sei que nem todo mundo é bem intencionado. Sei que muitos poderiam interpretar uma iniciativa de conversa como interesse sexual, por mais absurdo que isso me pareça. Mas não é nada disso. É curiosidade, é vontade de ampliar o conceito turvo e subnutrido que tenho do que é a vida.

Chego ao meu destino. Avisto-o, e nada mais penso sobre o metrô ou as pessoas que não conheci. Sorrio.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Por que escrevo?

Sempre que tento escrever um texto argumentativo pra esse blog, travo. Este ia ser sobre punições corporais (fica pra mais tarde, quando eu estiver menos passional), mas, bom, não é. É sobre minha história de amor com as palavras. Era uma vez...

Não vou dizer que sempre gostei de escrever, não é verdade. Mas posso dizer, sim, que sempre gostei de ler. Aprendi cedo, aos quatro anos, e não só porque as tias da escolinha me faziam repetir as letras do abecê que ficavam grudadas na parede da sala ("efe de faca, gê de galinha, agá de helicóptero"), mas porque eu queria entender o que todos aqueles letreiros no shopping queriam dizer. Pois é, eu fui uma consumistazinha.

Quem me ensinou a magia para decifrar todos aqueles códigos, mesmo, mesmo, foi minha avó materna. Nós passávamos as tardes juntas, porque minha mãe trabalhava o dia todo. Eu me lembro muito bem de sentar no colo dela, caderno e caneta em mãos, e tentar copiar a palavra "porta", que ela escreveu com letra cursiva, na caligrafia mais didática que conseguiu. Eu fazia a letra "o" ao contrário, e só conseguia fazer o "p" maiúsculo - o minúsculo demorou anos a sair. Lembro disso mesmo sendo tão pequena porque foi como descobrir o mundo. E de fato eu descobri.

Quando cresci um pouco, comecei a ter aulas de redação na escola; pronto, nascia a paixão. O maior orgulho da vida era quando a professora lia meu texto em voz alta. Ficava com vergonha, também, porque soava muito mais bobo do que quando eu tinha escrito, e pensava que meus colegas iam me achar uma tonta (mais ou menos o sentimento que tenho ao postar um texto nesse blog). 

De qualquer forma, a vontade sempre foi produzir o texto perfeito, e é claro que eu nunca consegui. Mas o prazer de encontrar a palavra perfeita, de criar a metáfora perfeita, de usar a mesóclise, esse que me motivou a escrever. Meu caderno de Português sempre foi mais bonito, mais colorido que os outros - isso antes de eu conhecer a Biologia. Os dois cadernos competiram desde então em estética e conteúdo -, atividades de conjugação verbal (isso, aquela do "Eu canto, tu cantas, ele canta", que todo mundo acha um saco) eram um prazer.

Amo fazer o que estou fazendo agora. O ato de escrever está para mim como a bebida para um alcoólatra. Não saberia viver sem escrever - já está provado que a abstinência traz irritação e inquietude. Notem que o amor ao ofício não leva necessariamente a um trabalho bom (não me considero uma boa escritora, mas pretendo ser. Tenham paciência), mas faz com que cada palavra seja escolhida com capricho. Escrevo porque preciso escrever. Tenho que escrever. Escrever por escrever.


“Escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando…”

Clarice Lispector (Pelo menos é o que dizem. Não colocaria minha mão no fogo pelas referências)

sábado, 14 de dezembro de 2013

Casa na árvore

"Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque ela está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos"

Vicente de Carvalho


Ah, meu amigo Vicente, como estava enganado ao escrever seu Velho Tema. O poema que ainda há pouco era o meu favorito, que me abriu as portas ao mundo da poesia, que baseou meus conceitos e regeu minhas decisões mais íntimas, está errado. 

Minha árvore milagrosa sempre pareceu estar ali, à espera. Eu sabia que, se desse mais um passo, poderia enfim tocá-la. Andei muito (oh, como sou velha e cansada), de vários jeitos e em várias direções. Pulei, voei e, quando parecia que eu tinha um de seus pomos na mão... Ele se esvaía, como um sonho, e virava uma lembrança boa. Eu não conseguia por minha árvore em lugar algum. Um dia, dei-me com as palavras de Vicente de Carvalho, e encontrei um conforto típico de quem sente que não tem escolha: as coisas são assim, e pronto. Eu jamais a alcançaria. Não precisava mais culpar-me por não conseguir.

Houve, porém, um momento. Breve, coisa de alguns minutos. O espanto me acertou em cheio, direto no alvo, quando tive consciência de que eu estava plenamente feliz. Essa lembrança me acompanha desde então, quando estou lavando louça, ou cortando a carne, ou escovando os dentes, e abro um sorriso cheio de pasta. Ele estava errado! Não só toquei a árvore, eu a agarrei com unhas e dentes, e não pretendo soltá-la nunca mais. Agora que sei que ela existe, colherei seus pomos e os porei em todos os pedacinhos da minha vida. Morarei na árvore para sempre.

Parem as editoras! Queimem as antologias! Rasguem todos os Velhos Temas, escondam-nos das crianças!


Coitado de você, querido Vicente, que nunca se sentiu assim.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

E se Descartes fosse poeta?

Filosofar não é o meu forte. Assim, trago aqui pensamentos soltos, um pouco mastigados, e jogo num texto cru. 

Estou em época de vestibular, tentando desesperadamente tatuar fórmulas e conceitos no meu córtex, ou não passarei na droga da prova. É um método falho e pobre de avaliação, na minha opinião, mas não é sobre isso que venho falar. Durante minhas tardes de estudo, frequentemente me pego (apesar de amar gramática, não vou usar a ênclise, desculpem) pensando o mundo como um novelo de fenômenos físicos e químicos amontoados e entrelaçados. Fico pensando em por que as gotas de água da chuva no vidro do carro distorcem a imagem do semáforo (e desespero-me (pronto, usei a ênclise) ao perceber que não sei, pois pode cair no vestibular), quando gostaria de estar apostando corrida de gotinhas e ficando tonta com o cheiro delicioso de terra molhada (asfalto molhado, acho) como fazia quando criança. Devaneio sobre a refração da luz do sol na minha janela, ao invés de admirar a vista incrível do por-do-sol que tenho do meu quarto.

A questão é que não acho que há uma forma certa ou errada de se encarar o mundo. A visão científica e a poética se estapeiam dentro de mim, cada qual querendo tomar o lugar da outra. Embora me dê prazer compreender o funcionamento das coisas, não acho que um arco-íris possa ser reduzido a um conceito, nem o globo terrestre a meras linhas meridionais. Não que eu ache que a ciência seja um erro e deva ser ignorada; pelo contrário! Como para qualquer coisa na vida, procuro um equilíbrio. Quem tende a querer explicar tudo a seu redor passa a ser triste, porque não há qualquer beleza (ao menos não que eu possa ver) em assistir a um relâmpago e pensar que é só mais uma descarga das nuvens, que são só moléculas de água, que é só um oxigênio e dois hidrogênios que vivem grudadinhos. Em contrapartida, desconhecer qualquer explicação e acreditar que um relâmpago é fruto da ira divina me parece igualmente entristecedor.

É por isso que acredito em um equilíbrio. Saber o que é e, por não temer, poder admirar. Tenho medo de achar que sei tanto e a vida perder a magia. E o cheiro de chuva não causar mais qualquer efeito. E o pôr-do-sol não significar mais nada. Vivo me policiando, o tempo todo, pra não deixar esse bando de fórmulas me engolirem, digerirem e cuspirem uma Marina cética, insensível. Gosto de ter a alma assim, meio sabida, meio poeta, e poder voar de uma metade a outra, e poder juntá-las numa só.



*O uso excessivo de parênteses é proposital e muito bacana